quarta-feira, setembro 28, 2005

AQUELE RISO SOLTO



A personalidade da mãe sempre tomou conta da casa. Seus gestos se espraiavam paredes, teto, telhado, mundo afora! Seu riso liberto tinha asas de libélula e cores de fada madrinha. O colo cálido, sempre presente, era repouso de guerreiros e guerreiras. Ela – a filhota, a caçula, a riqueza – provara cada fibra daquele afeto. A filhota, assim que ganhou corpo e sagacidade pra saber da própria sorte, entendeu o quanto a casa era feliz. A mãe – a do riso solto, a do colo cálido – sabia deixar ir e sabia deixar voltar; sabia, enfim, ensinar aos pequeninos seres alados que pipocavam impúberes pela casa as técnicas milenares do vôo livre que cria novos mundos, que cria vida, que cria amor e gozo. A filhota era grata – eternamente grata – por tudo isso. E naquele aniversário, comprou um presente assim ó escreveu coisas que só vendo pra acreditar, sabe? A mãe, olhos úmidos, agradeceu com seu melhor: o riso.

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BARGANHAS



O dever, para ela, encarnou no trabalho. A prisão diária em troca da liberdade parcial que o ordenado representava ao final do mês. Emprestava seu corpo – seu território sagrado – às arbitrariedades do que é menor para garantir a apoteose de cada sábado.

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NUMEROLOGIA



Ao corpo franzino e inviolável ela opunha a voracidade de sua boca para compor o objeto de desejo que representava na cabeça deles. Atravessara a adolescência entre volubilidade das festas americanas e as batalhas travadas contra sua vocação: a luxúria, o desvario, a visceralidade. Mantivera-se, por capricho, intacta até os dezesseis. (Desde cedo encantara-se pelas narrativas mitológicas e um mais seis é sete e sete é número mágico).

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terça-feira, setembro 27, 2005

A DANÇA



Aprendera dançar num salão amplo e arejado, onde podia dar vez aos rodopios ciganos que lhe subiam dos tornozelos para as coxas, para o ventre. Dessa liberdade guardava boas lembranças e os espaços reduzidos de agora deixavam-na sem ar, vítima de um peso celestial que exigia dela respeito e temor. Sua dança ficara mais contida, deixou de girar, abdicou dos passos largos – mantinha firmes os pés no chão. Esses movimentos migratórios tornavam-na vociferante, malditas hordas civilizadas essas que se estabelecem, sem pedir licença, nos espaços vazios que antes eram só dela e de seus amigos e de seus convidados e dos seus, dos seus.

Os encontros, aos poucos, foram perdendo a graça. Sua dança converteu-se num eterno esquivar-se e ela, sinuosa e fria, ganhava feições de serpente e gestava peçonhas mortíferas na órbita dos olhos turquesa. Seus olhos, agora, serviam para inocular veneno potentíssimo, fatal. Tomara gosto pela destruição, pela morte, pela ceifa. Fizera-se dura, rija, perdera a graciosidade dos movimentos, embora sua figura ainda exercesse um demoníaco poder sobre toda sorte de homens, mulheres e felinos que dela se aproximassem. (Era o fascínio da morte, seu irresistível mecanismo de atração e repulsa tão caro ao ser humano. A morte é o destino que nos atrai, nosso signo mor, nosso fim).

Na lida diária perdera o gosto pela vida, tornou-se mais esquemática, cedeu a um ou dois modelos de conduta e de outros tantos fez uma salada que a nutria perfeitamente: na medida exata do sobreviver. Quando descobriu que sua arte – sua dança, sua corporeidade – tornara-se marcha (de progresso), já era tarde para voltar, para procurar novos bailes, novos salões. Lamentou um pouco a perda do lastro com o passado, mas nada que – em sua versão marmórea – resultasse em lágrimas ou lamúrias. A inflexibilidade tocara-lhe os ossos. Agora era olhar para frente e seguir o ordinário.

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É TUDO VERDADE



Riso contido, negaceava. Verdade nunca fora seu forte. E, afinal, que graça têm os fatos? Graça tinha ela, nos vestidinhos floridos, nas calças brancas, nos tecidos leves. Eu disse isso.Ela, riso solto e alado, fez alegria. Chamou pra perto, apertou os lábios contra os meus e danou a falar sacanagem assim. Eu gostava. Estávamos ali, eu e ela, éramos nós: para quê verdade maior que essa?

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FEITO COISA



Um dia fui objeto do teu amor, recebi os mimos que me cabiam: a recompensa dos amáveis. Mas agora – agora o quadro é bem outro: não passo do sujeito que reorganiza as lembranças em busca de um sentido insuspeito. Saudades – saudades lancinantes do tempo em que era objeto. Tudo que eu precisava, naquele tempo, era estar ali, ao alcance, disponível, aberto, luminoso, radiante e parabólico, sempre pronto a captar a freqüência do teu desejo. Hoje sou apenas mais um sujeito – mais um sujeito que, depois de ti, segue às apalpadelas, experimentando a hostilidade do mundo em cada gesto, confrontando sorrisos estranhos e tentando decifrar enigmas silentes em faces jamais vistas: faces ocultas na mesma moeda que encerrava nossa história.

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NOS BASTIDORES



Sempre teve predileção por tarefas complexas, que envolvessem miudezas, detalhes (riqueza de). Fazia o tipo ensimesmado, saturnino – daí o espanto de todos diante daquela cena. Não se esperava dele, não, não – dele, jamais. O fogo divino sempre foi dos heróis, dos que ficam no primeiro plano. Ele? Ele não. Como disse, era um homem de miudezas, detalhes (riqueza de), bastidores. E de lá – dos bastidores, ora! – é que fez o primeiro, o segundo, o terceiro plano: todos meticulosamente arquitetados. Cenário montado, terminou no quarto. Com ela. Em chamas.

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APELO



A única verdade é o desejo, galega. O “x” da questão não repousa nem lá – nas tuas ciências ocultas – nem cá – na minha vã filosofia: a resposta está entre as pernas: tem cheiro, tem gosto, tem charme, tem fogo. Vem comigo, galega, aceita meu convite: vamos passear no bosque enquanto o seu lobo não vem. Vamos nos perder e dançar e beber e foder até a exaustão – até nunca! Até nunca! Bora perder os sentidos e embriagar e adolescer e alucinar e gozar – gozar do amor algo loco que brota entre os seios, na surda incandescência do teu sexo emudecido, calado e mal-comido. Vem, galega, a hora é essa, abra os braços, abra a boca e suspire: dê asas à languidez que é só tua e abra – abra logo as pernas, que já canso de bater. É tempo de deitar, galega. É tempo de deitar, vem pra cama – já passa da hora. É tempo de deitar...

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O COPO



Só restou a luminosidade daquele copo. O brilho hipnótico, cristalino, translúcido. Jóia líquida: continha em si todo valor do esquecimento, do torpor, da ausência – bênçãos únicas num mundo de euforia e danação.

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SILÊNCIOS



Já não cabe em mim aquela calma de outro tempo. Agora tudo vem aos borbotões. São torrentes que me arrastam, turbilhões, cataclismos cognitivos, irrupções, bolhas: bolhas de pensamento que surgem, incham e explodem no ar para constituir outras combinações, outros agenciamentos, outros enunciados. Tudo se parece a um dança, uma grande dança, um bacanal, uma orgia profana feita de prazer e fugacidade. É a face do hedonismo que surge insinuante, espiando-me nas frestas deixadas pela precariedade do meu pensar. Um hedonismo infantil, pautado pela inocência e o desejo louco e forte e breve de ter a vida nas mãos – a própria, a minha, a outra. Esse fluxo leva consigo minha paciência, meu jeito bom moço de ser no mundo, minha delicadeza. Faço-me áspero sem incorrer no excesso da austeridade. Aperfeiçôo técnicas arcaicas – insuspeitas num mundo de silício e concreto – e dou pra estabelecer contato com a selvageria que me vai, com a selvageria do cosmos, com a selvageria mágica dos feitiços, dos desdobramentos, do irracional e do irascível. Perco os pudores, deixo de esconder minha própria maldade. Meu desprezo pelo mundo (ou por um certo mundo) se faz mais evidente, mais visível, mais palpável. Seguro meus delírios com unhas e dentes – minhas unhas, meus dentes – enrijecidos pela certeza de que de toda parole é arquitetura – falível, ruível, rizível. Em meio à verborragia, calo, silencio, caio num sono profundo, multicolorido e hermeticamente fechado. Meu legado é esta mudez.

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segunda-feira, setembro 26, 2005

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domingo, setembro 25, 2005

VAMOS FAZER UM FILME



Cinema, cinema, cinema em primeiro plano. O segundo, fica por conta da sala de espera. Sala, não: café. Desfile de pernocas louras diante de mim. O livro aberto é sempre um refúgio para quem preza o anonimato.

Ela chega com uma roupa clássica, quase quê. O jeito de cruzar as pernas e acender um cigarro me leva a pensar que ela acredita participar de um filme noir de veia francesa. Estivesse ela agora usando um chapéu de abas largas – lá estaria eu a batizá-la Margot. Mas não. Não usa chapéu, mas tranças, que lhe dão um ar paradoxal ao deixá-la a meio do caminho entre a Lolita e a feme fatalle. Não é nem uma, nem outra: é casada. O marido chega atrasado e dá-lhe um beijo formal. Mal roçam os lábios.

Engatam numa conversa do tipo “como foi seu dia amor”. Na mesa ao lado, um grupo de adolescentes suscetíveis começa a sentir os efeitos das duas rodadas de chope. Perco alguns trechos do diálogo do casal Jean Pierre e Margot. (Pensando bem, ele parece americano. Estivéssemos num filme, chamá-lo-ia Bob, e temeria por minha vida por saber que se trata de um político influente e mal-caráter, com tentáculos espalhados pelos quatro continentes e meia dúzia de paus mandados no Pentágono). Bob está nervoso e acende um cigarro de filtro amarelo e marca duvidosa para relaxar. Margot começa a perder a descontração dos primeiros minutos de espera. Seu olhar, de repente, se extravia e a imponência de há pouco vai embora. Estivéssemos num livro, chamá-la-ia Mrs. Dalloway.

Bob reconhece um amigo a subir as escadas. Dá um sorriso e grita uma saudação que não compreendo bem, porque uma das adolescentes da mesa ao lado acaba de me pedir fogo. Estendo isqueiro para a pequena sem prestar a atenção devida. Ela agradece e volta para o seu bando. À mesa de Mrs. Dalloway, soma-se agora um tipo de porte médio, cabelos pretos, lisos, escorridos, grossos e um tanto desgrenhados. Usa a camisa meio aberta e estampa no peito um colar. Estivéssemos num filme, chamá-lo-ia Pedro Sanches – e trataria de ocultar-me no balcão do bar pra que ele não reconhecesse meu rosto, já que circula o boato de que el hombre comanda um dos maiores grupos da máfia cubana em Los Angeles – mesmo sendo porto-riquenho.

Mrs. Dalloway (des)concentra-se agora brincando com um isqueiro. A essa altura desisti completamente de descobrir a cor de seus olhos. Percebe-se: está entediada. A presença de Bob a incomoda e a de Sanches causa-lhe pavor. Sanches, por sua vez, também não presta atenção exclusiva à conversa: divide-a entre a eloqüência conspiratória de Bob e as pernas de Mrs. Dalloway. Bob concentra-se em si mesmo e, à medida que se embebe das próprias palavras, vai se aproximando mais e mais de Sanches, jogando-lhe no rosto toda fumaça do cigarro. Bob, Bob: tem o péssimo hábito de falar com a fumaça nos pulmões. Mrs. Dalloway, que percebe-se imperceptível, fuzila o marido com os olhos. Aparentemente odeia-o. Estivéssemos num filme, chamá-la-ia Nikita.

A raiva parece tomar conta de Nikita. Num movimento brusco, levanta, atraindo a atenção de Bob por um breve instante. Toma da bolsa e, num átimo, vejo-a tirar dali uma graciosa e pequenina pistola, com a qual dará um único e certeiro tiro na têmpora esquerda de Bob. Mas minha imaginação é fértil. Fértil demais. Ela apenas se levanta e vai em direção ao banheiro. Estou, agora, entre ela e sua meta. Não há como não trocarmos olhares. Não há como não. Mas acontece. Não trocamos olhares. Nikita olha firme para frente. Os olhos, castanhos de ódio. Estivéssemos num filme, diria que – que a sessão vai começar. Chamo o garçom, pago minha conta e corro para a fila. Nikita vai se atrasar, penso. Alguém toca meu o ombro.

“Me empresta o fogo?”

É a adolescente da mesa ao lado. É pequena e tem cabelo castanho-claro – quase louro. Humbert, Humbert. Estivéssemos num Kubrick, chamá-la-ia Lo-li-ta: “a língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca”...

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quinta-feira, setembro 22, 2005

BEATITUDE

Fez da vida um eterno curvar-se. Trazia em cada vértebra o marca dos miligramas suportados – hematoma de cada cruz, o rastro úmido de cada lágrima, eco rascante de cada grito contido. Tornara-se homem de sorriso amargo e gestos parcimoniosos. Aprendera com o tempo a ser represa, prendendo cada gota d’água. E eram tantas! Fluxo contínuo, eterno, fonte inexaurível de água que brotava e brotava e brotava. Estava cansado e sabia que não tinha exclusividade sobre este sentimento. Assim estavam todos à sua volta, desde o vizinho até o genocida, o tirano, o estóico, o esteta, o atleta, o perneta. Todos, todos – todos mancos, leprosos deixando os pedaços pelo caminho pra não se perderem nunca – o medo, o medo de perder-se é aterrador. Sempre um caminho de volta, sempre uma cama quentinha bem feita sorrindo tentadora -- os lençóis brancos refletindo o sol da manhã: nada de novo sob ou sobre: nada!

Nada de novo sobra, se não restos, migalhas, farelos, restolhos. Os manjares, pra ele, tinham gosto de comida requentada. Seu festim era diabólico por carecer de glória e de carne: o suplício, o suplício.

Ao fundo, toda aquela música – a balbúrdia dos que disseram não. A euforia dos que abriram a boca e gritaram e comeram e se fartaram ao dizer: chega!

Ele? Ele não se fartada do mundo: apartara-se dele e a dor vinha disso e de nada mais. Nada a mais. (Des)existência feita de subtrações. Tudo reduzido ao mínimo múltiplo comum: o mínimo. Absteve-se dos excessos. Manteve-se distante das bocas vermelhas, das bocas de fumo, da boca do lixo. Abdicara dos intestinos, das reentrâncias, da virulência de seu desejo. Sim, porque um dia lhe fora (mal)dito que assim é que se faz – e assim ele fizera. Seguira tudo tudo, passo a passo, tim-tim por tim-tim com o respeito que se dedica aos manuais, aos roteiros, às cartilhas.

Se ainda tem um desejo? Claro, ora! Mesmos homens sérios e corretos como ele guardam no coração um sonho, um delirium, a secret garden. Seu desire não era voltar no tempo pra corrigir isto ou aquilo. Queria apenas aceitar o dado (aquele arremessado por alguém, um dia, em algum lugar) e tirar dele proveito, o quinhão de felicidade que lhe cabe neste mundão. Queria isso, e só: a solidão dos satisfeitos, o paraíso perdido, a terra prometida. Pois não é com choro e ranger de dentes que ascendem aos céus os beatos?

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terça-feira, setembro 13, 2005

NADA



Entre uma garfada e outra, o vazio: prato a transbordar. Comer, comer – é o melhor para fazer o tempo passar. Crescer? Não, não. Inexiste movimento numa linha infinita. Ele sabe disso. Noutro tempo, conversava sobre essas coisas. Antes ainda, lia sobre essas coisas. Hoje? Hoje ele come, devora, rumina o próprio ódio, a própria náusea, o próprio umbigo. Fez-se cabra ensimesmado. O mesmo. Sempre o mesmo. Nem mais, nem menos: só o mesmo. E tudo – tudo que possui – é isto, é nada. Nada, entre uma braçada e outra. O destino é a linha do horizonte: a horizontalidade do caixão, dos sete palmos – e efemeridade dos aplausos. Nada, entre uma tragada e outra. Nada, num oceano de estupidez e silêncio gritado. Silêncio grifado é igual a nada. A morte? A morte está ali, entre uma trepada e outra. No meio do caminho que nos separa da morte jaz o nada. Nada, nada vezes coisa nenhuma. O nada, vazio. Melhor seria vadiar, adiar os compromissos indefinidamente, desobedecer. Melhor seria ser, e só – sem querer mais nada nem ninguém: a busca – vadia – do silêncio sussurrado ao pé do ouvido: o silêncio do indizível, do insondável, do cálido calo que surge onde aperta o sapato. Ele já sabe (o que quer, o que vê, o que é). O que faz? Nada. Entre uma garfada e outra...

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domingo, setembro 11, 2005

OITO



É mentira. É tudo mentira. Eu sei que é. Sei mesmo. Ninguém me contou. Eu senti. E pouca coisa no mundo é mais certa que isso. Isso que a gente sente – na pele. Fico entediado quando me falam em profundidade, em raízes, origens ou famílias. Tomei gosto pela superfície. Tudo pra mim é epitelial. E é assim que deve ser. Nada de cataclismos. Hoje, só me interessam os pequenos acidentes. O resto é mentira. É tudo mentira. Construções que carecem de bases firmes e não passam disto: construções. Não quero mais saber do que está no fundo. Se está no fundo, é secundário: está morto, enterrado. A profundidade me cansa: é mentira de pernas longas: oito pernas de aranha – e uma teia gigantesca.

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ESPASMOS

Uma das vantagens de se manter um blogue é poder acompanhar o próprio desenvolvimento (ou a própria involução) ao longo do tempo. Como aqueles pais que acompanham o crescimento do filho fazendo marcas na parede. Quem acompanha o blogue sabe que antes prevaleciam aqui os textos pseudo-teóricos, as especulações, a obsessão pelo pensar com, pelo pensar junto. A idéia era dialogar, promover encontros e tal. Criei o blogue pra isso. Pra ser um registro das revoluções de meu próprio pensamento e o papel do pensamento alheio (os afetos) nesse processo. Hoje – hoje as coisas mudaram. O número de textos de ficção só faz crescer...

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Andei pensando sobre isso nas últimas semanas. Acredito que a mudança do blogue, mais uma vez, diz minha mudança. A impessoalidade é presa difícil. Mesmo nos textos mais teóricos e frios, sempre estiveram lá pedaços de mim (e uma das minhas principais discussões aqui era justamente no sentido de tornar explícito que é sempre assim). Doce ilusão a dos formalistas que acreditam na possibilidade de separar biografia e obra (seja artística ou teórica). Não dá. (O que também não significa que as conexões entre uma e outra coisa sejam tão imediatas e simplistas como muitas vezes se pensa). A vida, quando pensada, não tem nada de simples. Simples é o viver – mas isso é outra história. Uma história que tem pouco a ver com o blogue, enquanto ferramenta para a construção de sentidos, enquanto tecelagem.

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Vi e revi vários filmes de Martin Scorsese. Comecei pelo Aviador, passei por Bons Companheiros, joguei com Cassino e descobri que Alice não mora mais aqui. Nesse périplo fui conduzido por Scorsese – conduzido pela mão. A câmera, em Scorsese, respeita a realidade do filme. Não é invasora, nem violadora: é espiã, é voyeur. É como se a lente, viva, nos dissesse: “ei, vem aqui, dá uma olhada nisso”. A gente se aproxima e observa – sempre com a respiração presa: silêncio.

Isso é cinema!

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Estou pensando seriamente em voltar a fazer deste espaço um lugar para notas: registrar idéias como aquela do manifesto.

Como? Não falei disso ainda? Então...

... trata-se de um manifesto sobre cinema revolucionário. Um manifesto que defende um cinema de final realmente feliz. Que defende a felicidade impossível e impensável: uma felicidade tão utópica a ponto de tornar inaceitável tudo que seja mediano...

Volto a falar disso quando acabar o manifesto. Se acabar. Ou quando tomar coragem e fazer um filminho pelo menos. Se tomar...

Por enquanto, rumino a idéia...

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A regularidade é necessária. Para tocar o impossível é preciso aprender a jogar com o possível.

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O real está presente. O real é presente – de Grego.

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E chega.

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quinta-feira, setembro 08, 2005

BETWEEN THE BARS



Temiam-se mutuamente noutra época. Aquele jeito feliz-feliz que ela tinha – seu modo inabalável de ser no mundo ativava nele um estranho mecanismo de atração e repulsa. (Repulsa, sim, porque dava pra repelir o próprio castelo – de areia, de cartas marcadas: castelo de lugar comum).

Ela – ela era o pitoresco. Se descendia de alguma raça era das Valkirias – jamais da nobreza afetada e incolor do amor cortes. (Não que não apreciasse a poesia ou carecesse de sensibilidade. Não, não – muito pelo contrário. Se guerreira era – o era por nadar contra a maré e acreditar no impossível. E, afinal, é assim se invertem valores!)

Aquele medo, por sua vez, foi desaparecendo aos poucos, entre um e outro gesto incontido. Ela se despia entre a data especial e o encontro fortuito, numa espécie uma dança dos sete véus que tinha como palco o hiato deixado pelas incertezas – e pela distância. Criaram uma ponte clandestina para conectar seus mundos.

De um dia pro outro, perceberam-se nus e a sós sobre uma cama, brincando de amor e poesia entre sonhos loucos e delírios latinos. O amor deles brotara no meio, feito grama. Por conta disso, tinha graça – e balançava ao sabor do vento: doce a dissolver entre a língua e o céu daquela boca de lábios grossos.

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TUA NUCA



No princípio pareceu tudo tão simples, tão óbvio, tão no lugar. Aí foram surgindo fatos novos e as velhas novidades foram perdendo força, fenecendo: falimos. Nas primeiras noites, senti muita falta do teu corpo na cama: teu egoísmo manhoso me convencendo a coçar tuas costas até não mais poder, até o sono – o meu sono – chegar. Senti muita falta de teu corpo, de nada mais. O vazio que senti era palpável: tinha a proporção exata do teu corpo – do teu corpo pequeno. Nossa história – nossa história eu condensara ali, em cada milímetro da tua pele, da tua língua, da tua nuca: todos os sentidos tatuados – sintetizados na tua nuca.

(Ps.: Esse é velhinho -- mas vá lá).

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quarta-feira, setembro 07, 2005

CACHIMBÃO



Provara da fama, um dia – e do poder. As legiões, se arrastando aos seus pés, desdobravam-se em mesuras e que tais. Era homem simples, naquele tempo, mas guardava postura imponente. Sabia ser magnânimo como poucos. E disso muito gostava – ser magnânimo. Era uma das formas de exercer seu poder. A bondade, dizem os sábios, é uma das faces do poder...

... e perder o poder é uma das formas de perder-se. Com ele, assim foi. A força que exercia sobre os outros – aqueles outros que dele dependeram um dia – esvaíra-se com os anos.

Hoje? Hoje anda por aí, a arrastar sandálias rotas – a barra da calça, puída, sempre a tocar o chão. Guarda nos olhos azuis, um tanto desbotados, um brilho de estrela morta. Sua figura é simpática – tristonhamente simpática. Tratam-no condescendentemente. Respeitam-no, até. Mas por mais que façam, é sempre pouco perto do – ah, melhor não pensar nessas coisas.

Deu pra mendigar migalhas de atenção nos últimos dias. É feliz quando lhe dão o que deseja – mesmo quando disfarçam o enfado ao fazê-lo. Precisa se ouvir. Se cansado está é por conta de tanto silêncio. Sim, precisa se ouvir – mas falar sozinho é atestado de senilidade. Isso – isso ele não quer. Pena faltar-lhe a dignidade dos velhos elefantes. Deveria afastar-se e cantar – cantar pra subir de uma vez. Subir – há quanto tempo não sabe o que é isso...

E logo agora, com essa chuva – logo agora o fumo lhe falta.

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