SILÊNCIOS
Já não cabe em mim aquela calma de outro tempo. Agora tudo vem aos borbotões. São torrentes que me arrastam, turbilhões, cataclismos cognitivos, irrupções, bolhas: bolhas de pensamento que surgem, incham e explodem no ar para constituir outras combinações, outros agenciamentos, outros enunciados. Tudo se parece a um dança, uma grande dança, um bacanal, uma orgia profana feita de prazer e fugacidade. É a face do hedonismo que surge insinuante, espiando-me nas frestas deixadas pela precariedade do meu pensar. Um hedonismo infantil, pautado pela inocência e o desejo louco e forte e breve de ter a vida nas mãos – a própria, a minha, a outra. Esse fluxo leva consigo minha paciência, meu jeito bom moço de ser no mundo, minha delicadeza. Faço-me áspero sem incorrer no excesso da austeridade. Aperfeiçôo técnicas arcaicas – insuspeitas num mundo de silício e concreto – e dou pra estabelecer contato com a selvageria que me vai, com a selvageria do cosmos, com a selvageria mágica dos feitiços, dos desdobramentos, do irracional e do irascível. Perco os pudores, deixo de esconder minha própria maldade. Meu desprezo pelo mundo (ou por um certo mundo) se faz mais evidente, mais visível, mais palpável. Seguro meus delírios com unhas e dentes – minhas unhas, meus dentes – enrijecidos pela certeza de que de toda parole é arquitetura – falível, ruível, rizível. Em meio à verborragia, calo, silencio, caio num sono profundo, multicolorido e hermeticamente fechado. Meu legado é esta mudez.
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