quinta-feira, setembro 22, 2005

BEATITUDE

Fez da vida um eterno curvar-se. Trazia em cada vértebra o marca dos miligramas suportados – hematoma de cada cruz, o rastro úmido de cada lágrima, eco rascante de cada grito contido. Tornara-se homem de sorriso amargo e gestos parcimoniosos. Aprendera com o tempo a ser represa, prendendo cada gota d’água. E eram tantas! Fluxo contínuo, eterno, fonte inexaurível de água que brotava e brotava e brotava. Estava cansado e sabia que não tinha exclusividade sobre este sentimento. Assim estavam todos à sua volta, desde o vizinho até o genocida, o tirano, o estóico, o esteta, o atleta, o perneta. Todos, todos – todos mancos, leprosos deixando os pedaços pelo caminho pra não se perderem nunca – o medo, o medo de perder-se é aterrador. Sempre um caminho de volta, sempre uma cama quentinha bem feita sorrindo tentadora -- os lençóis brancos refletindo o sol da manhã: nada de novo sob ou sobre: nada!

Nada de novo sobra, se não restos, migalhas, farelos, restolhos. Os manjares, pra ele, tinham gosto de comida requentada. Seu festim era diabólico por carecer de glória e de carne: o suplício, o suplício.

Ao fundo, toda aquela música – a balbúrdia dos que disseram não. A euforia dos que abriram a boca e gritaram e comeram e se fartaram ao dizer: chega!

Ele? Ele não se fartada do mundo: apartara-se dele e a dor vinha disso e de nada mais. Nada a mais. (Des)existência feita de subtrações. Tudo reduzido ao mínimo múltiplo comum: o mínimo. Absteve-se dos excessos. Manteve-se distante das bocas vermelhas, das bocas de fumo, da boca do lixo. Abdicara dos intestinos, das reentrâncias, da virulência de seu desejo. Sim, porque um dia lhe fora (mal)dito que assim é que se faz – e assim ele fizera. Seguira tudo tudo, passo a passo, tim-tim por tim-tim com o respeito que se dedica aos manuais, aos roteiros, às cartilhas.

Se ainda tem um desejo? Claro, ora! Mesmos homens sérios e corretos como ele guardam no coração um sonho, um delirium, a secret garden. Seu desire não era voltar no tempo pra corrigir isto ou aquilo. Queria apenas aceitar o dado (aquele arremessado por alguém, um dia, em algum lugar) e tirar dele proveito, o quinhão de felicidade que lhe cabe neste mundão. Queria isso, e só: a solidão dos satisfeitos, o paraíso perdido, a terra prometida. Pois não é com choro e ranger de dentes que ascendem aos céus os beatos?

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