terça-feira, agosto 16, 2005

NÓS, MARINHEIROS



Ia encontrar com ele depois de meses. Ligou só por curiosidade, desejo louco-louco de saber como estava. O convite veio assim, espontâneo – e trouxe felicidade. Tem nós que não se desfazem. Nós de marinheiros: nós de gente que rasga o mar da vida meio que ao sabor do vento. Quem tem alma de marinheiro, assim é: diz que procura terra firme, mas embarca na primeira jangada. E só assim é feliz. “Navegar é preciso”; viver, não: a vida são linhas que se cruzam, se amarram, se rompem: ele é víscera; ela, por amor, faz das tripas coração. Entre os dois não há laço, mas nó – num par de sapatos vermelhos. Pode até dar errado. Sempre dá. Mas entre isto e aquilo, tem tanto – pra fazer, pra viver, pra curtir. Sim, sim: tudo vale a pena, pois a alma – a alma é do tamanho do mar. E ela quer mar-aberto, mar-adentro: prefere a incerteza da imensidão à calmaria provisória das represas de concreto. Está errado, está certo. Que se há de fazer? A vida surge em formas as mais variadas! Ela vem, nos travessa, depois vai – sem dizer adeus, sem mandar lembrança. O jeito é cravar-lhe as unhas nas costas, enquanto a temos nos braços. O esmalte – vermelho.

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segunda-feira, agosto 15, 2005

PASTÉIS

O quarto agora tinha novas cores: pastéis. Quando vivia em seu arco-íris, nunca ligara para o pote de ouro. No fundo, ela sabia: ele sempre estaria ali, era só estender a mão e pronto: tinha toda riqueza do mundo. Mas agora – agora era diferente. Não havia mais a euforia do vermelho, do amarelo, do violeta. Havia só o azul-celeste daqueles que colocam ordem na vida. Ordem monocromática. Paz. Ela sempre achou que era isso que procurava. Mentira. Mentira dela. Ela queria a violência da policromia: vermelho, amarelo, violeta: sangue, pus e pulso. Nem era pra agredir, nem era: era só pra viver, sabe? Ter consigo o mundo em todas as suas facetas. Afinal, de cores primárias pintam-se rosas e espinhos. Queria furar o dedo, fazer um pacto consigo mesma. Quis chorar, mas a lágrima não veio: presa, como ela. Sentiu vontade de voltar ao velho quarto, à velha cortiça cheia de fotos, àquela coleção de pôsteres. Ficara tudo pra trás. Todo caos. Toda esquizofrenia. Agora, só paredes claras – pastéis- pastéis! – e essa sensação de sufocamento. Deu um soco na parede. Dois. Três. Doeu. Não tinha mais volta. Era isso. A mão, vermelha, ela apertou contra o peito.

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domingo, agosto 14, 2005

UM DIA EU QUIS SER OUTRA COISA

Certo é o que está perto. Distância é o nome que se dá ao espaço entre um ponto A e um ponto B: aos infinitos pontos que compõem a linha em questão dá-se o nome de fantasia. Fantasia é um filme de Walt Disney. Um lugar que eu nunca visitei. Um lugar que não pretendo visitar. Sou do tipo indesejável. Meu rancor é meu cartão de visitas. Meu ódio é minha credencial. Minha raiva não interessa, porra! Eu quero o que é garantido. Quero comida na mesa, esposa na cama, escova de dentes. Um dia eu quis outras coisas. Um dia eu quis ser outra coisa. Dormia no ponto e sonhava. Aí perdi. Perdi tudo. Os sonhos, a vontade e até essa porcaria que os idiotas chamam de felicidade. Felicidade é o caralho! Certo é o que está perto. Esta cerveja, este torresmo, essas velhas conversas. O resto não é. Não foi. Nem passado é. Nem lembrança é. Nem nada. Distante? Distante é o nome que se dá ao meu olhar. Distância é o que há entre eu e mim. Distância e ânsia de vômito.

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sábado, agosto 13, 2005

SEM PENSAR

Tirou a velha calça, pôs de lado, cansada de levar aperto. Pensou em comprar uma nova, mas tinha que pesar bem as coisas. Tempos difíceis, tempo de fazer balanço dos prós e contras: o peso do mundo sobre os ombros. Logo ela, tão franzina! A providência a poucos provê. A onisciência é a ciência do onipotente: onipresente, só a dor. Mas amanhã – amanhã é outro dia. Dia de pintar o rosto e ir à luta, oras! Parar, não pode. Pra frente é que se anda, não é o que dizem por aí? (Difícil é tirar da cabeça a impressão de que está a andar em círculos).

Foi pra cama pensando no dia que passou. Tanta coisa rolando (morro abaixo?) e, na boca, só esse gosto de mais do mesmo. O sono demorou a vir e ela pensou (outra vez) em se apaixonar (outra vez). Aí despensou: despencou das nuvens, caiu por terra: não precisava se apaixonar: precisava de apaixonados. Alguém pra chamar de seu, pra beijar-lhe os pés, pra fazê-la mulher (outra vez) feliz, que já passava da hora. Sonhar? Sim! Sonhar. Sonhar não custa nada, não é o que dizem por aí? Besta. Só se for nada além da paz de espírito. Sonhos nos deixam inquietos, parecem ter vida demais enquanto nós temos de menos. O melhor é dormir e esquecer. Esquecer tudo-tudo, zerar o cronômetro, jogar fora as malas e seguir viagem à pé, descalça. Sim, dormir. Dormir – e viver – sem pensar. Sem pensar que amanhã é terça-feira. Sem pensar nas contas. Sem pensar no que queria, no que poderia, no que diria se...

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quinta-feira, agosto 11, 2005

AÍ VEM...

Tem momentos em que tudo parece vir na dose certa: espécie de conjunção astral que torna tudo mais claro e intenso. Os significados importam menos. Tudo fica mais à flor-da-pele. A vida nos arranha, enfia-nos a língua molhada orelha adentro. A gente curte e goza junto. A oposição entre perfeito e imperfeito vira pura tautologia. A plenitude está na ponta do dedo. Cai o teto da capela. O céu não tem limites.

(Aí vem o desejo de eternizar – e fode tudo).

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terça-feira, agosto 09, 2005

SETE VEZES SETE VEZES

Na primeira vez, você disse que não podia. Tentou explicar, tinha seus motivos. Eu disse que não precisava, entendia, deixa disso. Na segunda vez, você disse que não dava e tentou explicar suas razões. Deixei, mas você foi menos convincente que o esperado. Deixei passar. Amava-o demais pra apegar-me às miudezas do seu discurso. Na terceira vez você disse que tinha se enrolado um pouco, que explicava depois, mas que não poderia ir mesmo. Fiquei triste, quase chorei. Mas o amava ainda. Eu o amava tanto! Na quarta vez você disse que precisava ir, que era coisa importante, que eu precisava entender, que eu costumava ser mais compreensiva. Dessa vez – dessa vez chorei. Chorei tanto, mas tanto, mas tanto – chorei até secar um pouco. E sequei. Secou. Um pouco. Na quinta vez você disse que viria, mas não apareceu. Nem ligou. Nem quis discutir o assunto. Chorei. Outra vez. Mas um pouco menos. Chorei até secar. Até secar bastante. Até secar mágoa por mágoa. No peito – no peito um deserto seco-seco. Sentimentos estilhaçados: grãos de areia, vão dos dedos. Vãos. Seca, seca, seca. Na sexta, guardei o que restou numa mala: vazio. No sábado, poesia.

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segunda-feira, agosto 01, 2005

Missiva

Caro Psicotópicos,

Escrevo para dizer a vida anda boa aqui no “mundo dos cheiros”. Não tenho muita certeza de pra onde estou indo (e quem tem, Psico?!), mas suspeito que vou por um bom (o palavrinha difícil de definir) caminho. Não sei se cheguei a comentar com você, mas começo a redescobrir o valor da solidão. Não, Psico, não virei eremita: meu pesar pelos descaminhos da humanidade não cresceu ao ponto de virar amargura ou ódio. A solidão de agora assemelha-se mais àquela típica dos períodos de transição. Lembra quando falei sobre os desertos povoados do Deleuze aqui? Pois é, acho que é por aí. Tenho sido muitos ultimamente. De maneira estranha, algo que surgiu quando menos esperava -- trabalho, Psico, trabalho! -- tornou-se a linha de fuga perfeita para romper com uma situação que já começava a se tornar opressora. É verdade que topei com essa linha sem fazer muito esforço (foi como se me fora trazida, entende?). Tenho uma mania um tanto impertinente de procurar nexo entre os fatos, Psico. Por conta disso, andei especulando sobre os novos cenários que se me apresentam e, de uns dias pra cá, comecei a desconfiar que vinham sendo pintados há bastante tempo. Parece incrível, mas tudo de que falei por falar desde o momento em que decidi dar novo rumo à vida... tudo aconteceu! E tudo é bom, Psico! Fugi e procurei uma arma. Finalmente, estou perdido. “Sem amarras, barco embriagado ao mar”, como diria ‘quela moça que a gente gostava tanto de citar.

Não sei porque falo dessas coisas. Nossas conversas sempre foram mais formais, não é? Tirando um surto ou outro, quando as “sentimentalidades” me faziam dizer besteiras, cometer equívocos, sempre mantive um tom mais sério em nossas conversas, não? Se bem que, pensando melhor, eu andava meio esquisito ultimamente. Nos últimos meses, você deve ter me estranhado. Dei pra fazer gracinha, testar meu senso de humor, essas coisas. Nunca foi meu forte, né?

Na verdade, estou escrevendo por culpa, acredito. Depois de tanto tempo sumido, achei bom dar uma satisfação. Afinal, amizade tem disso. Precisa ser alimentada, não é o que dizem por aí?

Por falar em amizade, esse tem sido um terreno delicado nos últimos meses. É como se todas as minhas relações estivessem passando por uma prova. E, também isso, Psico – também isso parece bom. Há momentos em que é preciso passar um pente fino, matar uns piolhos (usar uns clichês). Engraçado é que isso nem é novidade. Não sei se é o eterno retorno ou só os tais ciclos, tão caros aos pré-modernos. O fato é que, de tempos em tempos, é preciso jogar fora algumas tralhas. E hoje, Psico – “hoje joguei tanta coisa fora”... só pra descobrir que, na boa: “a casa fica bem melhor assim”.

Escrevo ao som de At the River, do Groove Armada. Essa foi uma das boas descobertas da nova fase. M., claro! M. é phoda! A propósito, M. está grávida, cara! É, pode ficar surpreso! Meu choque não foi menor... Contando com Troops e L, agora todos meus amigos-duráveis terão herdeiros! Que coisa, né? E depois a T. vem dizer que sou velho!..

Mas, Psico, falo demais! Escrevi mais para dar sinal de vida e pedir que não desanime. Prometo trazer lembrança do “mundo dos cheiros”! E até notícias sobre a crise política (tá punk a coisa por estas bandas). De resto, tá na hora de peão (peão feliz, peão feliz) ir pra cama. Tem mais coisas pra contar, mas fica pra uma outra hora.

Abraços

Ps: Manda lembrança pro pessoal que sempre comenta aí. Saudades deles também.

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