domingo, fevereiro 12, 2006

ROSTOS



O que pode um rosto comum? O que pode uma câmera diante de um rosto comum? Essas duas perguntas me apareceram enquanto assistia a 10, de Abbas Kiarostami. Uma câmera, um carro, algumas conversas e: rostos. Rostos comuns. Rostos de mulheres. Rostos de mulheres iranianas, mais ou menos cobertos: descobertos pela câmera. Descobertos enquanto rostos femininos, e ponto. Mulheres do mundo, falando de coisas banalmente sérias, que podem acontecer tanto em Teerã quanto em Vitória. Rostos, frases, silêncios.

A naturalidade que atravessa os personagens do filme – que muitas vezes nem parecem personagens --, a câmera que muitas vezes nem parece de cinema, o áudio que muitas vezes parece o de todo dia – tudo isso junto para fazer do cinema um espelho capaz de gerar reflexos do mundo. O país das maravilhas está dentro desse espelho, revela-se na possibilidade de refletir a trivialidade do dia-a-dia para torná-la observável aos que, nela submersos, não conseguem apreende-la em sua eloqüência, em sua profundidade, em sua força dramática.

Num artigo para a Folha de São Paulo (12 de fevereiro/2006), intitulado Vidas em Liquidação, o psicanalista Jurandir Freire Costa tratou dos abandonos de bebês pelos pais que tanto ocuparam a mídia ao longo das duas últimas semanas. Tratando da banalização da vida, escreveu:

“Na presente crise de transcendência, a vida perdeu seu secular centro de gravidade valorativa, representado pela religião, pela política e pela moral privada familiar. Essas agências foram destronadas pelo impacto imaginário da ciência, da economia e da indústria do espetáculo. Atribuir valor à vida, hoje, requer um esforço permanente do sujeito para se deslocar de uma perspectiva para outra”.

Talvez o caminho apontado por cineastas como Kiarostami seja importante para pensarmos essas questões. Mostrar a vida, os encantos da simplicidade, pode ser mais útil num mundo moralmente despedaçado do que horas de discursos na ONU. Muitas vezes a mudança de vida depende de um momento de reflexão. Um instante capaz de nos fazer perguntar: pra onde estou indo? Esse instante pode estar num dos tantos silêncios que se sobressaem na verborragia árabe dos personagens de Kiarostami. Talvez seja possível encontrar aí a transcendência defendida por Costa. Talvez seja.

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sexta-feira, fevereiro 10, 2006

INTERDICÇÕES



Queria interdicto: a marvada carnexpressava em palavrazias o dissentido por mim. Queria interdicto queixumes só pra violentar o indevassável: o inexprimivelmente doloroso do momento em si (mesmado entre mim e ti). Queria interdicto nadadeiras capazes de (a)fundar princípios, meios e fins em teu oceano. Queria interdicto tanta coisa! – mas fui cortado pelâmina silente de meu pretérito imperfeito. Carecia de autoridade pra verter o gesto fundador do teu mundo, admiravelmente ovo, afinal, “no princípio era o verbo e o verbo era Deus”: diante do infinito, não poderia interdicto mais nada. Interditado, calei.

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quinta-feira, fevereiro 09, 2006

MELHOR GUARDAR, NÃO?



Queria ter dito a ela o quanto aquele nada foi importante. Tinha pra mim que o segredo do existir é encontrável na fugacidade de certos instantes: cabe saber fotografá-los: a revelação acontece no escuro, na calada da noite, no silêncio da cama vazia. Não deu tempo pra articular todo o sentido em palavras. Não me cabia mais aquele sentir. Pulava de mim, do osso, do peito. Não consegui dar outra forma ao meu querer que não fosse esta: a da insônia. E converti em pulsões mil – só pra complexificar tudo – aquela linha pura que se estendia na verticalidade de nosso encontro. Naquele ponto onde nos cruzamos, no ponto xis: quando fomos juntos. Onde? Ontem, sim, lembro como se fosse hoje. A receptividade (o convite) surgiu espontâneo, como quem pega pela mão e diz: “vem”. Eu fui, fomos, o quê? Aquilo, sim, sim, aquilo que não cabe – não coube, não é – em palavras. Aquilo que era em si o inarticulado. De articulado, apenas o que nos ia, nos arrastava. Foi ali, sim, ali no parapeito (nada mais apropriado pra conter um coração!). Na hora, nem entendi direito. Espécie de torpor. Visão, visagem, satori: o que estava entre a gente nos escapava. Fugimos. Perdemo-nos. Agora, o negativo – este negativo aqui – revela o que foi (e já não é). Não sei como entregar a ela o sentido, o vivido. Melhor guardar isso aqui, guardar comigo. Pras gerações futuras, quem sabe?! Se nestes corpos (celestes) houver perenidade suficiente pra tanta vida! Se houver vida! Se houver vida! Viva!

Melhor guardar isto aqui. Não?

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terça-feira, fevereiro 07, 2006

DA ARTE DO À VONTADE



A arte do à vontade consistia em esfregar nas fuças da esfinge o grosso de nossa ignorância, só para, ao final, ter o prazer de deixar-se devorar por ela. Lembro agora dos maus modos, aquele jeito desleixado de percorrer a casa de calcinhas (era bom o contado da língua e do algodão: saliva, água, boca: a santíssima trindade: nosso dogma: nossa profanação). O percurso todo foi percorrido sem que ela se desse por conta (o corpo, a trilha do corpo, os cheiros do corpo: um corpo é um corpo é um corpo). A apoteose silenciosa do despir-se toda. E a língua, grávida de obscenidades renascidas entrementes e claro claro claro corpos, sempre os corpos: zona proximal fonte infinita de nossas ciências. A arte do à vontade consistia em esfregar nas fuças da esfinge o grosso de nossa ignorância, soprar no final – e descobrir o que nasce pelo meio: nosso único fim.

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À MESA



Era senhor do gasoso. Seus gestos feneciam no ar, esfumaçavam-se. Entre eflúvios alcoólicos (e dores de cabeça) era possível assimila-lo (ou somatizá-lo, por que não?). Morava ali o sentido de suas palavras. Num deixar-se ir, indo. Sua aparição era sintomática. Dizia das agruras existenciais pelas quais passava o outro que era eu. O outro que procurava um tanto a esmo por fagulhas de vida – entre um compromisso urgente e uma tarefa importante. Toda essa (ir)realidade estava presente, posta à mesa, mas não podia ser pautada – assim estabelecia o acordo tácito fixado entre os presentes.

Como todo jogo, o deles também tinha suas regras (e suas exceções). A do outro, que era eu, o líquido, tinha a ver com as pernas da Srta. à minha esquerda. Prenhe de euforias, ela – a Srta à minha esquerda – trazia à atmosfera lúgubre e carbônica daquela mesa ares hálitos e vespertinos. Não fosse pelo que havia de interdito no contexto subentendido por todos, não pairava dúvida de que era tão somente ela o prato principal, o manjar tão esperado pelos esfomeados que ora entravam em confraternização. Era ela o elemento desejo: o elemento fogo, a seta, o alvo. Consistia o jogo, em verdade, na tentativa desesperada de causar-lhe boa impressão, arrancar-lhe sorrisos, por mais inútil que fosse a empreitada.

O gasoso, o líquido, o sólido, tudo convergia para um só e único ponto: ela. Da interdição que era o outro – o outro mesmo, o sólido, não eu – nascia a nossa dança. Um balé desordenado e belo feito de palavras de palarvas depravados. Dentre tantos palavrões e obscenidades, a perversão nascia do silêncio guardado entre as pernas.

Ela: a síntese de nossos estados.

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