segunda-feira, março 28, 2005

PASSADO, DIÁLOGOS E DESCULPAS

Neste feriado de páscoa fiz algo surpreendente, sobretudo pra mim: revi minha cidade natal. Acompanhei meus tios num périplo pelo Rio Grande e, no sábado, fui parar em Santo Ângelo. Esse retorno às origens foi interessante. Primeiro porque confirmou meu sentimento de que nunca fiz parte daquele lugar. Segundo, porque descobri que, embora a maioria das pessoas sejam cópias fieis dos lugares onde nasceram, sempre há exceções.

Uma das alegrias (surpresas) foi poder rever um velho amigo com o qual eu não falava há mais de nove anos e descobrir que grandes amizades resistem (mesmo) ao tempo e à distância (sempre fui meio cético em relação a isso). Conversamos muito. Os nove anos pareceram pequenas férias. Senti-me mais canceriano do que nunca nessa viagem ao passado (a Carol entende).

Sobre Santo Ângelo em si não há muito que falar. A cidade mudou pouquíssimo nesse tempo. Aparentemente está até bem cuidadinha.

Em virtude da sexta-feira santa, a Cadedral Angelopolitana (é esse o nome?) estava iluminada para a páscoa e as ruas interrompidas por procissões gigantescas que se estendiam por quarteirões inteiros. Toda essa religiosidade me assustou. Assim como me assustaram as churrascarias pela estrada, oferecendo “rodízio” de peixes.

Peculiaridades interioranas...

Ah! Não posso deixar de comentar um fato que me chamou muita atenção: há agora em Santo Ângelo um monumento que homenageia a Coluna Prestes que, pra quem não sabe, partiu de Santo Ângelo rumo à capital do país “há muitos e muitos anos”... O monumento é bonito, mas poderia ser ignorado se não fosse por um detalhe: é assinado por ninguém menos que Oscar Niemeyer. Não é nada, não é nada, mas já é alguma coisa...

Mas adiante, adiante: chega de falar de Santo Ângelo. Daqui dez anos, quem sabe, voltarei a este assunto. Por hoje, basta.

Falemos do que ando fazendo e de porque ando sumido...

Bem. Além de estar andando muito por Porto Alegre e lendo e relendo (remoendo?) obssessivamente aos Diálogos de Deleuze e Parnet, tenho me ocupado de escrever uma espécie de crônica sobre a cidade. Uma grande crônica que aborda diversos aspectos de Porto Alegre, aqueles que mais me despertaram interesse. O texto tem um caráter claramente personalista e, talvez, torne-se motivo de discórdia entre mim e algum porto-alegrense que, por ventura, trombe no Psicotópicos numa navegada qualquer. Mas isso acontece, portanto, postarei o texto assim que voltar para Guarapari.

A propósito, minha volta está marcada para o dia 6 de abril. Se alguém quiser me preparar uma festa de boas-vindas...

Brinco, brinco: meu ego está sob controle. Creio que recuperei o senso de humor e a paz de espírito. Aos poucos começo a compor novos cenários, agenciamentos particulares que podem render bons frutos – ou simplesmente frutos.

Aos que por aqui apareceram, deixo um abraço e peço desculpas por não estar retribuindo as visitas. Devo dizer que meu tempo de navegação é escasso por aqui (proporcional à escassez de grana). Portanto, só resta pedir que não desapareçam em definitivo: vocês fazem o Psicotópicos, são o de fora, os nômades que povoam este deserto.

Abraços, abraços.

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sexta-feira, março 18, 2005

ELIS, LENNY, GODARD E VIAGENS



Ontem (17 de março) foi aniversário da Elis Regina. Como não poderia deixar de ser, o Rio Grande do Sul em peso dedicou grandes espaços jornalísticos à Pimentinha. Apesar da ênfase excessiva no gauchismo de Elis, as matérias foram interessantes. É sempre bom ouvir aquela voz e ouvir histórias sobre a cantora.



Anteontem aconteceu aqui o show do Lenny Kravitz, no estádio Olímpico. Ao que parece, os dirigentes do Grêmio resolveram hospedar o espetáculo para compensar a má fase do tricolor: um show de primeira para substituir um time de segunda...



Hoje fui à Usina do Gasômetro (novamente) para assistir a Viver a Vida, de Godard. Saí de lá e parei aqui no cyber para atualizar o blogue, verificar e-mails. Ainda estou sob efeito do filme, que me exigiu um esforço intelectual deveras considerável. E não falo por se tratar de um filme de Godard (ter lido o ensaio de Sontag sobre o filme antes de assistir ao filme relativizou consideravelmente a intensidade do choque), mas sobretudo em razão das legendas em inglês. Não sei se os leitores sabem, mas a professora de inglês é a Carissa. Eu? Eu só sei o suficiente para me virar.

E me viro bem, me viro bem. Só hoje pude perceber. Consegui entender 95% dos diálogos do filme, mas, infelizmente, a necessidade de concentrar-me na leitura das legendas em determinados momentos me fez perder detalhes das imagens que evoluíam na tela. Apesar disso, valeu. Valeu muito. Fiquei fascinado, sobretudo, pela colocação das câmeras, por exemplo: o modo de fixar o rosto do personagem que ouve num diálogo, captando suas reações, seus olhares. Deliciei-me com a cena – bela, bela – em que a protagonista dança para chamar a atenção de um rapaz num bar qualquer. Amei o texto a antecipar os capítulos... Genial! Genial!

***

Creio que só agora começo a sentir os impactos psicológicos da viagem e da solidão: começo a repovoar meu deserto. Aos poucos, vou distinguindo o que é desejo e o que é sugestão. Dentre as infinitas possibilidades que se me apresentavam – enquanto jornalista recém formado — algumas começam a ganhar corpo, aparecendo com maior nitidez. Isso é bom. É bom porque, possibilidades reduzidas, diminuem as impossibilidades. (Não falo de querer um mundo de portas fechadas, muito pelo contrário: falo de querer um mundo com portas, maçanetas e chaves).

E por falar em chaves, ontem lembrei do Dapirueba: assisti a um episódio de Chaves. Foi bom, foi bom.

Abraços.

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terça-feira, março 15, 2005

ÓI A CHUVA!!!

Chove aqui em Porto Alegre. Hoje passei boa parte da tarde na Usina do Gasômetro, uma antiga usina (termoelétrica?) que funcionava à beira do Guaíba e há alguns anos foi transformada numa espécie de centro cultural. É lá que estão exibindo os filmes preferidos da Susan Sontag (escolhidos pela intelectual para uma mostra organizada por ela em Berlin, em 1990). Hoje assisti a "A regra do jogo", de Jean Renoir, e "Fim de Verão", de Ozu. Ambos lançam um olhar sobre o relacionamento entre homens e mulheres: um na França "pré-guerra" e outro no Japão pós-guerra. Em comum, uma sensibilidade que ofusca um pouco a abordagem de um filme como Closer, por exemplo, que comentei aqui na semana passada. Mas é injusto comparar.

Há dois dias está acontecendo aqui um protesto dos pequenos agricultores, em frente ao palácio do governo. Os agricultores acamparam na praça e estão pediando a ajuda do governo. Hoje, ativistas de um dos muitos grupos que têm relação com esse protesto depredaram um carro de reportagem da RBS TV, a repetidora da Globo por aqui. No "Jornal do Almoço", um editorial inflamado não perdeu a chance de detonar (com certa razão) a atitude dos ativistas. O que me irrita é a burrice desse pessoal, a falta de orientação. Na minha cabeça a atitude só serve pra dar mais motivos à RBS para detoná-los, dá à RBS legitimidade. É triste.

Mas por hoje não quero falar de mais nada. Só que estou com fome, que está chovendo e que começo a sentir um pouco de sono.

Ps.: Carissa, saudade.

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segunda-feira, março 14, 2005

CONSTANTINE, PROTESTOS E ENCRUZILHADAS

Segunda-feira. Continuando com os relatórios cinematográficos: ontem assisti a Contantine. Comentários: creio que o grande problema do filme foi mesmo o Neo, digo, o Keanu Reeves. Primeiro pelos cabelos pretos, depois por uns trejeitos um tanto quanto afetados em algumas cenas. Pra mim, que não sou um especialista nos quadrinhos do Constantine (mas que gostei de tudo que consegui ler até hoje), isso não prejudica TANTO o filme. Nem isso, nem os (d)efeitos especiais, a computação gráfica algo tosca que virou tradição em filmes baseados em quadrinhos (exceção feita a Hulk e Homem-aranha, é claro). O filme é interessante e, na maior parte do tempo, o Neo, digo... ah, vocês entenderam... na maior parte do tempo o Keanu Reeves consegue pegar o espírito do personagem. Gostei também de alguns enquadramentos que são a cara dos quadrinhos: um cigarro queimando em primeiro plano com a cena rolando ao fundo, fora de foco; um close no rosto do “herói”, cortando um pedaço da testa. Lances desse tipo que fazem a gente transcender o filme e encontrar o verdadeiro Constantine.

Bem, bem. Falo muito de filmes. Vamos às novidades, mas não sem antes dizer que meu nariz está zerado novamente. Não sei se há uma relação direta entre os fenômenos, mas choveu ontem aqui em Porto Alegre (aliás, no estado inteiro). O pessoal ficou feliz.

Hoje acordei com um líder de agricultores a gritar desesperadamente num megafone. Sua voz reverberava nos prédios e parecia que ele gritava diretamente nos meus ouvidos (o que, convenhamos, não é nada agradável). Não confirmei (estava com sono), mas acredito que fazem parte de grupos de assentados que reclamam ajuda do governo para enfrentar os estragos da seca. Na semana passada, foram estudantes protestando contra o aumento no preço das passagens de ônibus. Ao que parece, já começam a aparecer nos porto-alegrenses os primeiros sintomas de arrependimento com relação à eleição de Fogaça.

Mas não falemos de política. Ando sem paciência pra isso ultimamente...

Queria, na realidade, falar das encruzilhadas da vida... mas não há tempo pra se aprofundar nessas questões... Abraços para todos.

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sexta-feira, março 11, 2005

NARIZ, CINEMAS E SONTAG

Meu nariz parou de sangrar. Quer dizer, não sangrou nem ontem nem hoje. Mas continuo cabreiro, evitando meter o nariz onde não sou chamado. Isso não cheira bem, mas rende umas piadinhas infames.

Os cinemas por aqui continuam a preços módicos. Ontem, assisti a Closer (gostei bastante) e Sidways (gostei com ressalvas). Total da tarde cinéfila: R$ 6,00.

Quanto ao emprego de repórter especial... bem, o negócio é o seguinte: é especial porque é apenas para uma empreitada. Logo, descartei a possibilidade. Sigo especulando.

Mais cinema: tá rolando por aqui uma mostra dos filmes preferidos da Susan Sontag. Na lista, diretores como Bresson, Ozu, Resnais, Visconti e -- é claro -- Godard. Se assistir aos filmes que "fizeram a cabeça" da Susan já é bom, melhor ainda é assisti-los de graça. É, bom isso. Eu sei.

Por hoje, é isso. As impressões de caráter antropológico, guardo pra outra oportunidade. Abraços.

Ps.: Carissa, saudade.

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quarta-feira, março 09, 2005

SANGUE, CYBER, CINEMAS E ESPECULAÇÕES



Cheguei em Porto Alegre por volta de onze e meia da manhã. Meu tio foi me encontrar na rodoviária e tomou um susto: meu nariz sangrou dentro do carro. Isso nunca tinha me acontecido, mas, leigamente, creio que foi culpa do ar-condicionado do ônibus: trinta e seis horas não é pouco tempo.

Nariz curado, tomei um banho e fui almoçar. Comi num restaurantezinho bacana. Com sete reais e você pode comer até a morte e ainda ganha “de grátis” um suco de abacaxi (meio aguado, é verdade, mas quebra um galho). Apesar dos atrativos, comi pouco: não confiei no meu nariz. Mas acreditem, meu pouco já é muito.

Depois do almoço, sai pra dar uma volta pelo centro de Porto Alegre (apesar de minhas pernas terem praticamente dobrado de tamanho de Guarapari para cá). Passei nos cinemas e descobri que “Sobre Café e Cigarros”, de Jim Jarmusch, entra em cartaz depois de amanhã. Vou ver.

Ai, ai... como é bom ter acesso às benesses da cidade grande! Sei que parece babaquice, mas, meus caros: sair da invernada em Guarapari para universos como este mexem com a cabeça de qualquer um.

Mas como nem tudo é festa (e a grana é curta), fiz coisas úteis também. Primeiro, descobri este Cyber Café com um precinho bacana. Depois, comprei um jornal desses de “oportunidades” pra dar uma sacada nas opções de emprego por aqui. Descobri que há algumas vagas interessantes no SINE, por exemplo: repórter especial. Não faço a menor idéia do que se trata, já que repórter especial pode ser tanto um eufemismo para free-lancer (o que também não é de todo ruim) quanto definição para um cargo no estilo Pedro-Bial-nos-bons-tempos (o que é praticamente impossível). Quando sair daqui, ligarei pra descobrir do que se trata.

No momento, posso dizer que estou muito cansado. Muito mesmo. Parece que vai chover por aqui (é sério: as nuvens têm me perseguido nos últimos dias) e uma cochilada agora não seria má idéia.

Bom, bom, bom. Acho que é isso. Poderia escrever mais, mas não vou: tentarei pegar a sessão das 16 horas no cineminha aqui ao lado: tá passando Mar Adentro. Abraços.

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sexta-feira, março 04, 2005

RETOMADAS, MEDOS E "CANTOS PARALELOS"



Retomei hoje a leitura de “A paixão segundo G.H.”, de Clarisse Lispector. Retomei -- e encarnei o compulsivo. Li durante toda tarde, aproveitando a chuva -- adiando a vida-lá-de-fora para depois do estio. É interessante observar as coincidências: a primeira vez que comecei a ler “A paixão”, foi pouco antes de ir para Porto Alegre, em 2003. Ao que parece, vou terminá-lo amanhã, dois dias antes de retomar um caminho.

Em 2003, fui a Porto Alegre para participar do Fórum Social Mundial. Naquela vez, mergulhei em mim mesmo e saí renovado mas, ao que parece, faltou-me fôlego para ir mais fundo. Quando voltei, acabei incorrendo em muitos dos mesmos erros e perdi um certo estado de espírito – ou estado de empiria – que desenvolvera por aquelas bandas: algo que só é possível na solidão. Assim como não fui capaz da via crucies clariceana, não fui capaz de mim.

Desta vez, vou em busca de algo que quero-mas-não-sei-se-quero. Independente de realizar ou não este querernãoquerer, o fato é que a viagem é importante. Assim como foi importante percorrer as linhas da Paixão novamente. Desta vez, decidido a ir até o fim e, se preciso, mastigar meu próprio medo, meu próprio nojo, meu próprio ser: quero comer a barata.
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O primeiro texto do livro “O inventário das sombras”, de José Castello, fala de Clarisse Lispector: “A senhora do vazio”. No texto, além de confessar também sentiu-se incapaz de “A paixão segundo G.H.” quando tentou vive-lo pela primeira vez, Castello conta que também passou por uma experiência marcante com Clarisse. Uma experiência que posso entender perfeitamente.

Em 1974, Castello, um jovem jornalista que timidamente enveredava pelos labirintos da literatura, viu-se às voltas com G.H. e, num ato impulsivo, decide enviar a Clarisse um de seus textos. Como era de se esperar, a resposta não veio. Castello desistiu. Até que, na véspera de natal, o telefone tocou.

Passemos a palavra a José Castello:

“(...) o telefone toca e uma voz arranhada, grave, se identifica: ‘Clarrrisse Lispectorrr’, diz. Ela entra logo no assunto: ‘Estou ligando pra falar de teu conto’, continua. A voz, antes vacilante, torna-se firme: ‘Só tenho uma coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso’, e os erres desse ‘medrrroso’ até hoje arranham minha memória. O silêncio ensurdecedor que se segue me faz acreditar que Clarisse desligou o telefone sem ao menos se despedir. Mas logo sua voz ressurge: ‘Você é muito medrrroso. E com medo ninguém consegue escrever’.”

Infelizmente, nunca falei com Clarisse, mas acho que entendo o que Castello quer dizer quando penso na sensação que os textos de Clarisse deixam em mim: a sensação de que nunca serei capaz de me entregar daquela forma ao texto, à linguagem, à vida, ao vazio; nunca serei capaz de me entregar daquela forma.

Mas nunca é palavra demasiadamente taxativa. E de taxativa basta a linguagem. Sobre esse assunto, tem uma frase do Barthes que é muito significativa. Em “A Aula”, seu primeiro discurso no Colégio de França, o estudioso diz que a linguagem é essencialmente fascista, “pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Obrigar a dizer de uma certa maneira, de uma certa forma. Há limites na linguagem que precisam ser transcendidos para que se possa, de fato, dizer certas coisas ou dizer de certas coisas. Ultrapassar esse limite pode significar correr riscos: riscos de cair no vazio do indizível. Por isso, talvez, não seja possível escrever com medo. E por isso, talvez, Clarisse seja assustadora – como as feiticeiras, as bruxas... como certas mulheres.

Mas falo demais, falo demais. É compreensível. O próprio Castello diz que ao ler Clarisse às vezes é preciso ser com ela, acompanhar sua escritura de perto, fundir-se nela. Nessa caminhada, é impossível não de deixar contaminar. Espero, sinceramente, que esse vírus não torne este texto desagradável. Pensemo-lo como um “canto paralelo” – ainda que um tanto desafinado.

Abraços.

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quinta-feira, março 03, 2005

SOBRE VIDA, VIAGEM, MACACOS E COISAS SIMPLES



Acho que amanhã compro minha passagem.

Falando concretamente, trata-se de uma passagem de ônibus para Porto Alegre. Muitas horas na solidão na estrada – só eu e meus pensamentos.

Falando subjetivamente, essa viagem ganha outras proporções. Desaparece o incômodo da poltrona, a luz perturbadora dos faróis, o barulho do motor. Resta um: eu. Um eu que precisa muito ficar sozinho consigo mesmo.

Eu. Maikel, Psico, Bebê. Eu, jornalista desempregado, idealista repleto de pessimisto (pessimismo cortante, com raízes cravadas na crença de que os seres humanos são melancolicamente estúpidos na maior parte do tempo e isso é capaz de acabar com a alegria de qualquer um). Eu, o cético apaixonado – o apaixonado cético. Eu, “o cara”. O cara das potencialidades, das aptidões, do bom gosto: o cara-de-pau.
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Chama-se Máiquel o protagonista de “O Matador”, romance de Patrícia Melo que deu origem ao filme “O homem do ano”. Do filme, o roteirista (nada mais, nada menos que Rubem Fonseca) retirou da história uma parte que, no livro, é muito significativa: a piada do macaco.

Logo no comecinho do romance, Máiquel diz não gostar de piadas e conta que na vida toda só guardou uma na memória. Resumidamente, a piada é assim: um homem fura o pneu do carro na estrada, desce para trocar e verifica que está sem macaco. Olha em volta e percebe-se completamente isolado. A única casa na qual ele poderia conseguir um macaco emprestado fica a cerca de três quilômetros do lugar onde ele está. Sem alternativa, ele começa a caminhar em direção à casa. Com quase um quilômetro já percorrido ele começa a duvidar do que está fazendo. Fala consigo mesmo: deixa de ser imbecil, o cara não vai emprestar o macaco pra um desconhecido. É bem capaz de te botar pra correr de lá. E você andando essa distância toda à toa, volta pro teu carro e espera alguém passar. Com esses pensamentos na cabeça, ele andou mais um quilômetro, sempre pensando: mais um quilômetro percorrido à toa. Você é mesmo imbecil. O filho-da-puta não vai emprestar o macaco, como é que ele pode ser tão miserável? O que é que custava emprestar a porra do macaco?! O que é que custava? Depois de ter andado os três quilômetros, o cara chega à porta da casinha. Bate. Um senhor vem atende-lo e, antes que possa dizerpalavras, ouve do cara do carro: enfia o macaco no cu, porra! O cara disse isso. Disse isso e percorreu os três quilômetros de volta em direção ao carro. Sem macaco.

A Patrícia Melo, na voz do Máiquel, conta a piada de outra forma (e melhro). Mas piada é piada, então.... O fato é que o Máiquel dizia encarar a vida dessa forma. E eu, o Maikel, às vezes (mas só às vezes), faço a mesmíssima coisa. Coincidências.

Quando li isso pela primeira vez pensei: putz, será que preciso pintar o cabelo de loiro e sair matando gente pra dar um jeito na minha vida? Não, não, pensei comigo. Não consigo me imaginar de cabelo loiro.
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Nem sei o motivo pelo qual escrevi essas coisas. Minha vida anda até bem legal. Exceto pelo falo de ela é menos minha do que eu gostaria que fosse (embora às vezes seja e mais do que poderia ser).

Manias estranhas. Durante um tempo, tudo que eu quis na vida foi ser hippie, beat, sei lá – qualquer coisa que viajasse pelo mundo só com a cara e a coragem – sem laços, sem correntes, sem nada. Com o tempo, descobri que tenho uma formação burguesa demais, classe-média-brasileira demais. Isso tem seu lado positivo (como quase tudo na vida). Mas tem outros lados...
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“Como tudo na vida”: é o nome do último filme do Woody Allen que vi. O carinha de American Pie (esqueci o nome) faz o papel de Woody Allen (com outro nome, claro), um comediante talentoso, mas cheio de medos, incertezas e muletas nas quais se apóia all the time. O Woody Allen é o velhinho porra louca que muda tudo isso.

Engraçado ver Woody Allen falando mal de psicanalistas (logo quem!). O filme tem sacações legais (algo tolas às vezes, mas legais ainda). Faz a gente olhar pras próprias muletas e se perguntar: por que, diabos?

Tantas muletas, tantas pessoas que a gente manda enfiar o macaco no cu. Tantas opções de vida que precisam ser repensadas.
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Relendo o que acabei de escrever, percebo que o texto tem um tom entre melancólico e depressivo. Isso não condiz com meu estado de espírito hoje. Por isso o escrevi. Se o tivesse escrito na semana passada, sairia pior. Muito pior.

Hoje, na verdade, me sinto feliz. De um jeito que não me sentia há bastante tempo. De um jeito liberto. De um jeito Psico. Isso é bom. Quando percebi, sorri “e houve muita alegria”.

Sei que a viagem vai me fazer bem no atual momento. Nada melhor do que um período de introspecção como preparação para a guerra (metaforicamente falando). Vou lá, rever o Guaíba, respirar novos ares – talvez até pare de fumar (é... acho que exagero).

Falando nisso, meus cigarros acabaram. Preciso ir. Está chovendo aqui, estou de moto, vou pegar uma chuva gelada e intermitente agora. Pasmem, mas devo dizer que gosto disso: “As coisas simples da vida”. Creio que passa por aí a minha libertação.

Fiquem com este texto atípico. E, se resolverem comentar, evitem aconselhamentos. As elipses prejudicam o bom entendimento e, neste caso, meias palavras servem para quase nada: têm mero papel estilístico. Em POA, descolo um PC e posto alguma bobeira de vez em quando. I´ll be back. Em breve.

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terça-feira, março 01, 2005

O PODEROSO ALEIJÃO



Queria o destino na ponta dos dedos, mas não tinha dedos, não tinha mão, não tinha alcance. O destino o conduzia à revelia, soprava sua vela, comia seu bolo. Ele, o predestinado, o escolhido, o mal levado.

Não tinha braços (apenas cotocos): os sentimentos o envolviam, mas ele não conseguia abarcá-los. Não havia troca, não havia troco. Suas lágrimas serviam de gorjeta (quando não eram roubadas).

No cotoco dos braços, apoiava a muleta que o apoiava. Equilíbrio (in)delicado: a sombra da queda sempre à espreita na esquina. Gostava de dizer que vivia pelo avesso: fazia-se no não-viver.

De não-viver em não-viver, foi construindo uma história e, a cada ano de não-vida, crescia o respeito e a admiração que lhe votavam pares e ímpares. Aos poucos, como quem extrai alegria do sofrer, aprendeu a tirar proveito da situação e reverteu o quadro (entendia de inversões como ninguém). Os mais desatentos passaram a ignorar a ausência de dedos, mãos e braços. A muleta, outrora um estigma, agora passava despercebida. Ele, o aleijão, sabia-se forte. E sábio, tirava proveito da própria força. Subvertendo os conceitos e radicalizando o paradoxo, aprendeu a manipular sem usaras mãos. À sua volta, apenas peças – suscetíveis aos seus humores.

Acostumou-se à nova realidade e, no meio de uma caminhada (entre um solavanco e outro), percebeu-se feliz. Súbito, entendeu que o destino perdera o jogo. O destino, agora, era ele: o poderoso aleijão.

Morreu dois dias depois da epifania, quando atravessava uma rua. A muleta – a maldita muleta – presa num buraco. Estabacou-se no chão e – ops! – deixou de ser. Os jornais não deram a notícia.

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