RETOMADAS, MEDOS E "CANTOS PARALELOS"
Retomei hoje a leitura de “A paixão segundo G.H.”, de Clarisse Lispector. Retomei -- e encarnei o compulsivo. Li durante toda tarde, aproveitando a chuva -- adiando a vida-lá-de-fora para depois do estio. É interessante observar as coincidências: a primeira vez que comecei a ler “A paixão”, foi pouco antes de ir para Porto Alegre, em 2003. Ao que parece, vou terminá-lo amanhã, dois dias antes de retomar um caminho.
Em 2003, fui a Porto Alegre para participar do Fórum Social Mundial. Naquela vez, mergulhei em mim mesmo e saí renovado mas, ao que parece, faltou-me fôlego para ir mais fundo. Quando voltei, acabei incorrendo em muitos dos mesmos erros e perdi um certo estado de espírito – ou estado de empiria – que desenvolvera por aquelas bandas: algo que só é possível na solidão. Assim como não fui capaz da via crucies clariceana, não fui capaz de mim.
Desta vez, vou em busca de algo que quero-mas-não-sei-se-quero. Independente de realizar ou não este querernãoquerer, o fato é que a viagem é importante. Assim como foi importante percorrer as linhas da Paixão novamente. Desta vez, decidido a ir até o fim e, se preciso, mastigar meu próprio medo, meu próprio nojo, meu próprio ser: quero comer a barata.
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O primeiro texto do livro “O inventário das sombras”, de José Castello, fala de Clarisse Lispector: “A senhora do vazio”. No texto, além de confessar também sentiu-se incapaz de “A paixão segundo G.H.” quando tentou vive-lo pela primeira vez, Castello conta que também passou por uma experiência marcante com Clarisse. Uma experiência que posso entender perfeitamente.
Em 1974, Castello, um jovem jornalista que timidamente enveredava pelos labirintos da literatura, viu-se às voltas com G.H. e, num ato impulsivo, decide enviar a Clarisse um de seus textos. Como era de se esperar, a resposta não veio. Castello desistiu. Até que, na véspera de natal, o telefone tocou.
Passemos a palavra a José Castello:
“(...) o telefone toca e uma voz arranhada, grave, se identifica: ‘Clarrrisse Lispectorrr’, diz. Ela entra logo no assunto: ‘Estou ligando pra falar de teu conto’, continua. A voz, antes vacilante, torna-se firme: ‘Só tenho uma coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso’, e os erres desse ‘medrrroso’ até hoje arranham minha memória. O silêncio ensurdecedor que se segue me faz acreditar que Clarisse desligou o telefone sem ao menos se despedir. Mas logo sua voz ressurge: ‘Você é muito medrrroso. E com medo ninguém consegue escrever’.”
Infelizmente, nunca falei com Clarisse, mas acho que entendo o que Castello quer dizer quando penso na sensação que os textos de Clarisse deixam em mim: a sensação de que nunca serei capaz de me entregar daquela forma ao texto, à linguagem, à vida, ao vazio; nunca serei capaz de me entregar daquela forma.
Mas nunca é palavra demasiadamente taxativa. E de taxativa basta a linguagem. Sobre esse assunto, tem uma frase do Barthes que é muito significativa. Em “A Aula”, seu primeiro discurso no Colégio de França, o estudioso diz que a linguagem é essencialmente fascista, “pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Obrigar a dizer de uma certa maneira, de uma certa forma. Há limites na linguagem que precisam ser transcendidos para que se possa, de fato, dizer certas coisas ou dizer de certas coisas. Ultrapassar esse limite pode significar correr riscos: riscos de cair no vazio do indizível. Por isso, talvez, não seja possível escrever com medo. E por isso, talvez, Clarisse seja assustadora – como as feiticeiras, as bruxas... como certas mulheres.
Mas falo demais, falo demais. É compreensível. O próprio Castello diz que ao ler Clarisse às vezes é preciso ser com ela, acompanhar sua escritura de perto, fundir-se nela. Nessa caminhada, é impossível não de deixar contaminar. Espero, sinceramente, que esse vírus não torne este texto desagradável. Pensemo-lo como um “canto paralelo” – ainda que um tanto desafinado.
Abraços.
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