O PODEROSO ALEIJÃO
Queria o destino na ponta dos dedos, mas não tinha dedos, não tinha mão, não tinha alcance. O destino o conduzia à revelia, soprava sua vela, comia seu bolo. Ele, o predestinado, o escolhido, o mal levado.
Não tinha braços (apenas cotocos): os sentimentos o envolviam, mas ele não conseguia abarcá-los. Não havia troca, não havia troco. Suas lágrimas serviam de gorjeta (quando não eram roubadas).
No cotoco dos braços, apoiava a muleta que o apoiava. Equilíbrio (in)delicado: a sombra da queda sempre à espreita na esquina. Gostava de dizer que vivia pelo avesso: fazia-se no não-viver.
De não-viver em não-viver, foi construindo uma história e, a cada ano de não-vida, crescia o respeito e a admiração que lhe votavam pares e ímpares. Aos poucos, como quem extrai alegria do sofrer, aprendeu a tirar proveito da situação e reverteu o quadro (entendia de inversões como ninguém). Os mais desatentos passaram a ignorar a ausência de dedos, mãos e braços. A muleta, outrora um estigma, agora passava despercebida. Ele, o aleijão, sabia-se forte. E sábio, tirava proveito da própria força. Subvertendo os conceitos e radicalizando o paradoxo, aprendeu a manipular sem usaras mãos. À sua volta, apenas peças – suscetíveis aos seus humores.
Acostumou-se à nova realidade e, no meio de uma caminhada (entre um solavanco e outro), percebeu-se feliz. Súbito, entendeu que o destino perdera o jogo. O destino, agora, era ele: o poderoso aleijão.
Morreu dois dias depois da epifania, quando atravessava uma rua. A muleta – a maldita muleta – presa num buraco. Estabacou-se no chão e – ops! – deixou de ser. Os jornais não deram a notícia.
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