PÍLULAS
Chamava-se Marcelo. Tomava pílulas bicolores de hora em hora. Guardava-as num recipiente plástico, que adaptava-se perfeitamente ao bolso dianteiro da calça. Os amigos diziam que era ansioso, mas quando tocavam no assunto, ele desconversava. Fazia parte do processo.
Estava solteiro há meses e, nas últimas semanas, isso começara a incomodá-lo. A última namorada, Bia, o deixara num clima relativamente amigável.
“Olha, Marcelo, não é você, entende? São as pílulas”
“Mas é do tratamento, você sabe!”
“Tenta homeopatia, tenta!”
“Não acredito nessas coisas”
“E eu não acredito mais neste relacionamento”.
Há dois dias, Marcelo sentiu saudades -- dias frios são armadilhas terríveis. Pegou o telefone e ficou horas brincando de liga-não-liga com o teclado. Não ligou.
Hoje, pela manhã, um fato novo perturbou sua rotina: esqueceu os comprimidos em casa. Pensou em voltar, mas não pôde: foi interceptado por um grupo de amigos que o arrastou para um local próximo. Tomar um café e apresentar alguém que ele gostaria. Foi. Ainda pensando nos comprimidos, mas foi.
O café estava bom. Preferia os comprimidos, mas o café estava bom mesmo. Aí apareceu Andréia-para-ser-apresentada, com óculos “modernosos”-- como Marcelo costumava chamar essas armações da moda -- e um ar de resfriada. A conversa seguia mais ou menos, até que Andréia sacou da bolsa um comprimido.
“Desculpe, mas não consigo suportar a idéia de viver sem eles”, disse. Tomou um gole do café para engolir, acendeu um cigarro e conviveu pacificamente com o caos daquele dia, em que deveria estar no psicólogo, mas em vez disso, estava num café, com pessoas falando ao mesmo tempo e irritando sua sensibilidade auditiva.
Observava Marcelo, com um ar de desdém, mas observava. Temia que alguém, mais hora menos hora, percebesse sua total falta de interesse por ele, e tentasse aproximá-los. Por isso o olhava.
Não estava convencida de que aquele homem á sua frente fosse seu par perfeito. (Não que acreditasse na baboseira vendida de “almas gêmeas”: era ativista, era rebelde e tinha tendências anárquicas). Porém, acreditava que no mundo inteiro, existiria uma pessoa a quem pudesse melhor tolerar -- e que este a toleraria também. Sofria de esquecimento, de TPM, de tantas coisas!
Notando o olhar perdido de Marcelo para sua bolsa pensou: “Quem esse lunático pensa que é? O que estará pensando de mim?”
“É um composto”, explicou-se. “Meu médico me deu para tratar algumas disritmias das quais venho sofrendo.”
Marcelo balançou a cabeça como se entendesse de disritmia como ninguém.
“Sei. Sei como é isso. Minha irmã sofreu disso durante um bom tempo. Um horror, não é?”
Desse comentário surgiu uma conversa interessante que fez Marcelo esquecer por um momento de seus comprimidos. Aos poucos, a conversa fluiu gostosa. Terminaram o café falando sobre cinema iraniano, discutindo o existencialismo na obra de Bergman e o papel de Sartre no pensamento dos pós-estruturalistas. Não passaram disso (encontros arranjados têm dessas coisas). Trocaram telefones e marcaram de se encontrar num outro dia.
Andréia foi pra casa encantada. Há tempos -- desde que se envolvera com seu professor de Literatura Comparada na faculdade -- que não tinha uma conversa tão interessante. Unidos pelas pílulas! Quem disse que não há poesia no mundo?
Marcelo foi para o trabalho e passou o resto do dia em silêncio. Não satisfez à curiosidade dos amigos. Quanto interrogado acerca do que achara de Andréia, respondia lacônico: “Legal”.
Foi para casa a pé, apesar do cansaço. No trajeto, pensou bastante. Pensou muito em Andréia. Reconstituiu mentalmente todos os passos da conversa no café, começando sempre no instante em que Andréia tirou da bolsa o comprimido.
Em casa, a primeira coisa que fez foi pegar o telefone.
“Bia, como é que funciona mesmo aquele lance da homeopatia?”.
Texto escrito em parceria com Carissa. Começo e o fim são meus. O meio – em itálico – é dela.
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