domingo, dezembro 25, 2005

VEM VER OS FOGOS



Vem ver os fogos comigo! Senta aqui, sente o restinho do calor da tarde que ainda se esconde na areia. Olhe o céu, como está iluminado! Fogos, fogos de artifício (feito nosso amor: inventado). Faça planos agora, linda. Aqui tudo é permitido. Faça promessas, juras de amor, diga que as coisas serão diferentes “no ano que vai nascer”. Diz que o que passou, passou! Seja comum,comungue com a multidão. Seja trivial, seja repetitiva: vale tudo agora. Ouviu isso? Outra garrafa de champanhe. O estourar da rolha, eu sei, confunde-se com a balbúrdia dessas pessoas felizes e embriagadas e iludidas. Mas o líquido está lá, mágico! Pega essa taça aqui, enche de champanhe, champanhe, champanhe pra gente! Pra gente comemorar as derrotas que nos fazem mais humanos, os equívocos que garantem nossa história! Vai, amor, traz pra cá um pouco dessa embriagues que já toma conta da orla, do oceano, de Iemanjá! Coloca nossos sonhos num barquinho, mas não esqueça do agrado, do perfuminho doce, do baton vermelho, da cocada branca. Vamos negociar nosso futuro com os deuses primitivos, vamos rufar tambores, sentir tremores, batucar, entrar em transe. Vamos fazer amor aqui, minha linda! No meio da multidão, entre as oferendas e velas, entre os dentes. Vamos, vamos, vamos fazer amor pra começar o ano com um orgasmo cataclísmico, multiplicado por esta alegria que só existe na esperança do novo, na mudança, na redenção. Toma outro gole, vai! Bebe, bebe até esquecer de tudo, até vomitar línguas arcaicas e gargalhar e tremer-se toda! Bebe, meu amor, porque o ano já se vai, já não é. Vai, bebe! Bebe, porque aquele tempo ficou pra trás – ainda que só por hoje, ainda que só por hoje.

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AS RUAS VAZIAS E O TAL ESPÍRITO



Procurei refúgio nas ruas para escapar à viscosidade do espírito natalino. Queria só um boteco razoável, quiçá a companhia de um ou dois seres humanos sem rumo – no direction home. Quem sabe uma cerveja gelada ou uma dose dupla de vodka com gelo e limão. Quem sabe um pouco de neutralidade. Um lugar qualquer – a nowhere – onde não houvesse luzes piscando ou bons velhinhos lançando risos bonachões na atmosfera.

Procurei refúgio nas ruas e encontre-as vazias, quase desertas. À meia noite – à hora dos gatos (todos) pardos – o mundo confraternizava ao redor de mesas bem decoradas e pratos típicos. Eu rodava, sobre duas rodas, pelos descaminhos desta cidadezinha meia-boca.

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Cansei deste espírito, desses cumprimentos efêmeros. Aos caros e às caras, desejo uma vida feliz. Que todos possam ser felizes durante os 364 dias do ano, assim o natal vai ter menos importância (e talvez os bares fiquem abertos e talvez a TV deixe de transmitir a Missa do Galo e talvez todos os filmes bíblicos sejam substituídos por reprises de A Vida de Brian).

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Estranho este sorriso no rosto das pessoas. Estanhas essas campanhas por um natal sem fome. É como se, por um momento, todo mal do mundo deixasse de existir – até o próximo “dia útil”.

E tomem musiquinhas alegres!

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O Dylan, o vodka, o gelo, a companhia ideal: eis-me aqui, imbuído de outro espírito. Melhor assim, melhor assim. E que São Nicolau nos livre da pieguice!

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terça-feira, dezembro 13, 2005

INTERIORRRRRRRRRR

Fazer jornalismo no interior é não fazer jornalismo. Esse é um dos dilemas que deveria ser levado em consideração pelos pesquisadores que discutiram a questão do desemprego entre os jornalistas no Colóquio Internacional Sobre a Sociedade da Informação.

O jornalismo de interior tem uma lógica própria, permeada pela política, pela incompetência e pela falta de critérios para discernir o que é relações públicas, o que é publicidade e, no pouco espaço que resta, o que é jornalismo. Jornalismo de interior só tem uma coisa que o aproxima do jornalismo “sério”: o dinheiro faz as máquinas girarem.

Não é novidade pra ninguém (pelo menos pra ninguém que acompanhe a imprensa com o mínimo senso crítico) que toda história da profissão foi construída em torno da política. Estão aí as biografias de Hearst, Chatô e Roberto Marinho pra todo mundo ler e aprender como se faz um, digamos, grande veículo de comunicação. Grosso modo, basta bajular políticos, construir uma base material (econômica, empresarial, etc.) e depois preocupar-se em ganhar a legitimidade/credibilidade junto ao público. (A Globo já está na terceira etapa. A Folha já estava desde os anos 80. A Veja entrou em colapso).

Os jornais de interior começam pelo caminho certo (certo não é a palavra certa, mas vá lá). Principiam pela bajulação política e partem para o tráfico de influências. Só nunca chegam à construção de uma “base material”, logo, a terceira etapa pode ser desconsiderada.

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Parece triste a situação dos jornais do interior. Mas é mais que isso: é trágica.

Não bastassem os perrengues financeiros, há um empecilho maior ainda para quem quer trabalhar de forma, assim... responsável. Falemos um pouco de Guarapari. Por estas bandas é praticamente impossível (praticamente é pra não parecer fatalista demais, embora seja este exatamente o caso) manter um jornal (mensal! mensal!) à base de anunciantes captados no comércio. Dá até pra fazer uma ou duas edições com uma forcinha dos conhecidos. É provável que o seu Joaquim da padaria enuncie com prazer na primeira edição do seu brilhante jornal, jovem Marinho! Mas na terceira ele vai começar a coçar os bigodes. Na quinta edição ele vai fugir de você, vai mandar dizer que não está. Lá pela oitava você vai ficar de campana na esquina da padaria pra tentar negociar uma permuta: “um anúncio em troca de três pãezinhos! É pegar ou largar, seu Joaquim!!!” (Ele vai largar).

Quando você finalmente entender que os padeiros, leiteiros e açougueiros não ganham assim tão bem para ficar dando dinheiro pro seu jornaleco de 2000 mil exemplares mensais, eis que surge a bifurcação: ou você corre pra debaixo da asa do Lindomar, o pedreiro – que virou garçon, que virou esperto, que virou político e agora é o vereador mais votado da cidade; ou você enfia seu tablóide... debaixo do braço e encara aquele concurso do INSS pra garantir seu pé-de-meia (e a cachaça do fim de semana, pois, acredite: você vai precisar).

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É claro que você pode ainda ser um daqueles aventureiros, sabe? Você tem uma grana em caixa, uma câmera digital, um gravador comprado na Vila Rubim e mais dois ou três amigos porras-louca que leram fragmentos de O Capital na adolescência e volta e meia entoam hinos oitentistas com refrões do tipo “a burguesia fede” ou “que país é esse”.

Sim, sim. Aí você monta um jornal de esquerda, quase punk-doom-hardcore-metal de tão raivoso. Nas primeiras edições você vai tentar arrancar (com dentadas, às vezes) impressões de seus leitores.

“E aí, leu?”.

“Heim?”

“O ‘Brado Visceral’, o jornalizinho que te dei semana passada”

“Ah! O jornalzinho! Claro!”

“E aí, e aí, o que achou?”

“O jornalzinho, sim, sim. Aquele que você me entregou. Bonito, né? Com umas matérias... Legal isso, né?”

Aos poucos você vai suavizando a linguagem. Em vez de “porcos capitalistas e neoliberais sem caráter” você vai escrever “os empresários”. Em vez de “horrendo modus vivendi da burguesia” você vai escrever “os hábitos de consumo da classe média brasileira”. Em pouco tempo você estará defendendo o Palocci e, se a ficha cair a tempo, das duas uma: vai ter uma crise de choro e ligar pra sua mãe pedindo dinheiro pra se inscrever no vestibular de Psicologia da UVV; ou vai encarar aquele concurso pro INSS...

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Pra não dizerem que sou pessimista, vou falar daquele tipo raro, aquela quase aberração, aquele ser único! O jornalista empreendedor e socialmente responsável. Esse tipo vai tentar fazer um jornal sério. Vai acreditar na técnica jornalística e terá o código de ética dos jornalistas (e o Observatório da Imprensa) como elementos básicos de sua liturgia. Ele vai tentar apurar matérias, produzir textos repletos de conteúdo, enriquecer a pauta!

Esse – é... – jornalista é caracterizado pelo brilho nos olhos no início – e pelas olheiras nos meses seguintes. No jornalismo interiorano, este desbravador vai se deparar com a má vontade da fontes, com o abandono das dos órgãos públicos de consulta, com bibliotecas infestadas de traças e com assessores de imprensa que consideram uma façanha produzir um release de 10 linhas.

Não dura muito em sua empreitada. Geralmente encara aquele concurso pro INSS – e passa em primeiro lugar.

Filho-da-puta!

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segunda-feira, dezembro 05, 2005

O FASCÍNIO DO ABOMINÁVEL



“Que princípio poderia fundar uma pessoa num mundo ‘oceânico’?” (Galp Harphan).

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“Um ano depois, em 8 de agosto, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo dos Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Émerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado galã do faroeste”.
(Da reportagem À Espera do Assassino, sobre o conflito por terras em Altamira, no Pará. Matéria publicada na revista Época nº 393, de 28 de novembro de 2005).

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“Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que sabe como é viver jurado de morte, mas não sabe. Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo pra não andar mais, porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada. É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando a máfia de Castelo dos Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida”.
(Da mesma matéria, o relato de Maria de Fátima da Silva Nunes, que bateu de frente com os pistoleiros de Castelo dos Sonhos).

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Como começou a matar?
Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba [“a polícia dos fazendeiros”] nas fazendas

O que sentia quando matava?
Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu lembro até hoje.
(Trecho da entrevista com um pistoleiro de Castelo dos Sonhos, responsável pela morte de 16 pessoas em Castelo e no Mato Grosso).

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A violência choca mais quando carente dos filtros do tempo ou da película. A reportagem da qual foram extraídos os textos acima descreve uma situação que acontece hoje, em 2005, no norte do país. Algo que acontece enquanto eu e você, raro leitor, repousamos tranquilamente diante de nossos PCs.

Há poucas décadas, Hanna Arendt tentou descrever os horrores do nazismo por meio do conceito de “banalidade do mal”. Se a teórica foi feliz em sua analise do nazismo é algo que se pode discutir por horas a fio nos círculos intelectuais e acadêmicos. O fato, no entanto, é que a banalidade do mal existe hoje, como existiu nos tempos de Hitler, nos tempos de Roma, nos tempos de Cristo. O progresso da humanidade é mera ilusão de ótica. Hegemonias engolem hegemonias o tempo inteiro, mas sempre, em todo absoluto, há vestígios do relativo. Em todo futuro há um naco de pré-história que insiste em se fazer ver, como a espinha purulenta que estoura na véspera do baile. Assim como os cordéis guardam traços da Europa medieval, os conflitos do Pará têm um quê de velho-oeste, um toque de Brasil colônia, um punhado de selvageria. O que não falta no mundo são bolhas das quais as “conquistas” da modernidade passaram longe ao longo do último século. Por aí a gente que mata ou morre como vive: carente de qualquer sentido.

Quando se fala em adolescentes acéfalos, em universitários vazios ou em patricinhas de cabeça-oca pode-se recorrer à psicologia mais rala e encontrar justificativas fáceis para explicar a imbecilidade generalizada. Fala-se da influencia perniciosa da televisão, da ideologia consumista, da ausência de limites dos filhos da geração de 68. Fala-se de qualquer coisa e funciona. Porque se trata de um mundo comum, um universo simbólico compartilhado por quase todos os seres urbanos nascidos no século XX.

A perplexidade vem no bojo dessas bolhas, dessas ilhas que, quando postas lado a lado, compõem um quadro terrível. O iluminismo não ilumina o Islã, como não fez com o nazismo, como não faz com a favela, como não faz com o Pará. Essas são realidades que o “etos branco” não sabe encarar. Uma lógica que escapa à grande maioria dos ocidentais. Nós sabemos conviver com a neurose, com a psicose, com os surtos esporádicos. Com o mal banalizado, não. Esse não se explica tão facilmente por meio de edipozinhos e pulsões disso ou daquilo. Esses mundos nascem da violência mais pura: aquela que só o é para quem está de fora. São mundos nos quais a violência passeia pela rua, invade as casas, toma cachaça nos botecos. É a violência que mata bebês e, quando muito, solta um “oh, dó” – que só dura até o próximo disparo, até o próximo incêndio. Mundos onde os corpos pouco valem. Mundos bizarros. O horror, o horror.

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Aproximação conflituosa esta que nós, os seres urbanos, mantemos com esses universos. No peito, mais do que na cabeça, a velha dança dos opostos: convivem, dialeticamente, o fascínio e o medo, a curiosidade e o horror. Há nessa barbárie toda uma beleza macabra, sombria. Um horror surge de nossas entranhas, como se tudo isso, no fundo, também constituísse uma parcela sinistra daquilo que somos (ou pensamos ser). Os olhos, vidrados, buscam a explicação no vazio.

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“Estava pensando em tempos de muito atrás, quando os romanos aqui chegaram pela primeira vez, há novecentos anos – ainda outro dia... A luz emanou deste rio [...]. Ainda vivemos na luz bruxuleante – possa ela durar enquanto a terra continue a rodar! Mas ainda ontem as trevas estavam aqui. Imaginem o comandante de uma bela – como é que se diz – trirreme no Mediterrâneo, a quem de repente se ordenasse seguir para o norte. [...] Imaginem ele aqui – o próprio fim do mundo, um mar cor de chumbo, um céu cor de fumo, uma espécie de barco rígido como uma concertina – subindo este rio como provisões ou ordens ou o que vocês quiserem. [...] A morte esgueirando-se no ar, na água, no mato. Deviam aqui morrer como moscas. [...] Desembarcar em um pântano, marchar pelos bosques e, em algum posto interior, sentir que a barbárie, a completa barbárie, os cercava [...]. Tinha que viver no meio do incompreensível, que é também detestável. E há também o fascínio que começa a se exercer sobre ele. O fascínio do abominável”. (Conrad, Coração das Trevas).

“Se Kurtz tem fascinado romancistas e cineastas é porque, perante a expansão do Ocidente, revela o aspecto sombrio, macabro, que chega ao ponto de tornar seu etos irrepresentável. Nesse sentido, suas palavras finais, ‘The horror, the horror’, são a formulação mesma do que não cabe em palavras – o irrepresentável é o inominável” (Luiz Costa Lima em O Redemunho do Horror: as margens do Ocidente)

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