terça-feira, março 30, 2004

ANARQUIA, ESTADO E SOCIEDADE CIVIL

A palavra anarquia adquiriu, ao longo dos anos, uma carga cada vez mais negativa. Assim como o termo maquiavélico é utilizado de forma inadequada para designar uma pessoa sem escrúpulos, o termo anarquia é utilizado para representar ausência de ordem. Tanto um termo quanto outro são mal utilizados nesses sentidos.

Sobre as apropriações indevidas do pensamento de Maquiavel, não falarei aqui. Sobre o anarquismo, falarei pouco, mas falarei.

Anarquia - não deveria ser novidade pra ninguém – significa ausência de poder. Representa, na realidade, o poder disperso, disseminado entre as pessoas. Fazendo especulações pseudo-científicas, poderíamos cogitar que a rejeição das pessoas comuns ao anarquismo vem muito mais da aversão das pessoas à ausência de um poder central, de uma diretriz, de uma(s) regra(s). Contudo, supor que não existem regras num regime anarquista seria tolice. Elas existem, sim. Mas para que funcionem as pessoas precisam ter duas coisas: consciência e responsabilidade.

Discutir o conceito de consciência, também não seria apropriado aqui. Até porque meus conhecimentos de psicanálise são parcos. Falemos mais um pouco sobre anarquia para, posteriormente, adentrar ao tema central desse texto: o estado.

Uma das características do anarquismo é opor-se a qualquer tipo de totalitarismo. Opor-se a qualquer regime que oprima o ser humano em nome de uma entidade abstrata. O Estado, como conhecemos, infelizmente, vai contra a liberdade das pessoas. No Estado moderno, os cidadãos trocam a liberdade pela segurança que, teoricamente, só o Estado poderia oferecer.

O grande problema nessa questão é o seguinte: o teoricamente da frase anterior. Na realidade, o Estado, da forma como funciona não oferece proteção. O Estado neoliberal só existe para o cidadão na hora de cobrar impostos. Impostos que nunca retornam ao bolso do contribuinte da forma como deveriam (segurança, saúde, educação e as velhas promessas de todo o político).

O Estado sobrevive, hoje em dia, às custas de retóricas mal construídas, com o apoio da mídia e das ferramentas do marketing.

Quem não conhece um caso de violência policial, de falta de atendimento médico em órgãos públicos, de falta de vagas em escola (pra não falar ensino de má qualidade)? Difícil alguém que não tenha passado por isso.

Acredito que a saída para esse problema passaria por uma reorganização da sociedade civil. Contudo, essa reorganização deveria partir de dentro da própria sociedade civil e, para isso acontecer, seria preciso haver reflexão por parte dos homens e mulheres que compõem essa sociedade.

Não acredito mais em saídas políticas para o problema. Acredito em grupos de pessoas afins que se reúnem em torno de um objetivo comum.

Pensemos, por exemplo, nos serviços de saúde. Cooperativas Médicas (que não fossem desvirtuadas pela ganância) poderiam ser alternativas interessantes para ocupar o lugar de onde o Estado ausentou-se. Cooperativas Educacionais poderiam reunir bons professores e oferecer educação de qualidade, com muito mais liberdade na elaboração de planos pedagógicos e currículos, a preços acessíveis. Aos poucos, à medida que iniciativas assim fossem ganhando força, a possibilidade de negociar isenção fiscal junto ao governo seria bem maior. A pressão da sociedade (as pessoas atendidas por projetos desse tipo) seria maior, encurralando o governo e tirando dele, aos poucos, o poder.

Esse enfraquecimento do Estado seria um caminho para aproximar-se de um regime “semi-anarquista”, no qual a liberdade fosse conquistada de forma gradual, proporcionalmente ao aumento da consciência das pessoas e à organização da sociedade civil.

(Como todos os textos do Psicotópicos, este também é um ponto de partida. Se alguém quiser continuar a discussão e pensar comigo sobre isso, os Psicomentários estão aí).

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quinta-feira, março 25, 2004

RECORTES PSÍQUICOS

“Um ato de estupidez”

Uri Avnery, líder pacifista israelense, dispara: o assassinato, pelo governo de seu país, do líder do Hamas é algo “muito pior que um crime”

Uri Avnery
Isto é pior que um crime, é um ato de estupidez. É o início de um novo capítulo do conflito árabe-palestino. Ele passará de um conflito nacional que pode ser equacionado a um conflito religioso, que pela própria natureza é insolúvel.

O destino do Estado de Israel encontra-se nas mãos de um grupo de pessoas cuja visão é primitiva, e cujas percepções são retardadas. Eles são incapazes de compreender as dimensões racionais, emocionais e políticas do conflito. É um grupo de líderes políticos e militares desmoralizados, que fracassaram em todas as suas iniciativas. E que procuram encobrir seus insucessos com uma escalada catastrófica.

A ação de ontem não coloca em risco apenas a segurança pessoal de cada israelense, em seu país e no resto do mundo. Ela também ameaça a própria certeza de existência do Estado de Israel. Golpeou terrivelmente a possibilidade de encerrar, com a palavra fim, três conflitos: o palestino-israelense, o árabe-isrelense e o israelense-islâmico.

Como não lembrar que nos primeiros anos da década de 80 as autoridades de ocupação encorajaram o nascimento do Hamas, esperando que criasse um contra-peso a Iasser Arafat e à OLP? Ou que, desde o início da primeira intifada, o exército e os serviços secretos de Israel deram um tratamento preferencial ao Hamas?

Parece não haver limites à estupidez de nossos líderes políticos e militares. Eles colocam em perigo o futuro do Estado de Israel.

Uri Avnery é escritor e ativista israelense e membro fundador do Gush Shalon.
Publicado originalmente em
: http://www.gush-shalom.org/english/

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terça-feira, março 23, 2004

Psicomentários sobre o assassinato de Ahmed Yassim


“Assassinatos extrajudiciais minam o conceito de Estado de Direito”
(Comunicado dos chanceleres da EU (União Européia), sobre o assassinato do líder espiritual do Hamas, Ahmed Yassim).

Para o conceito de “Estado de Direito” fazer sentido, é necessário primeiro repensar a idéia de racionalidade, sem a qual ele não faz o menor sentido. Os líderes israelenses e palestinos parecem, às vezes, carecer desse atributo cultural dos seres humanos. Primeiro, porque esse conflito estúpido já se estende por décadas, não havendo diálogo que o resolva. Segundo, porque o ódio dos israelenses contra os palestinos (terroristas, no discurso oficial) é tão imbecil quanto o ódio nazista (não faça aos outros o que não quereis que os outros vos façam – é Jesus (eles não crêem e não os culpo por isso), mas é Kant também. Terceiro, porque o diálogo intercultural não acontece assim de forma tão descomplicada.

Sejamos simplistas, façamos analogias: palestinos convivendo com judeus no “Estado de Israel” (esse presente da ONU aos judeus do pós-guerra) é mais ou menos como ter a Seleção Brasileira concentrada no La Bombonera (estádio do Boca Juniors, na Argentina). A diferença fica por conta do tipo de batalha que é travada. No futebol, os argentinos não usam canhões e os jogadores brasileiros não explodem no campo matando hermanos.

Sei que a comparação com o futebol parece boba e exagerada. Mas para mim, a diferença entre as duas rivalidades não parece assim tão grande: elementos de irracionalidade permeiam tanto o clássico futebolístico sul-americano quanto a “Guerra Santa” em Israel. A diferença (esta sim, grande) é que no futebol artilheiros, explosões e matadores são inofensivos.

O comunicado da União Européia (assim como os discursos da ONU) têm me parecido, cada vez mais, gritos no deserto, diante da bestialidade que tem tomado conta do mundo contemporâneo, especialmente após o 11 de setembro. Muita gente duvidou quando os analistas disseram que a Guerra do Afeganistão (ou melhor, a Guerra do Bush) era só o começo de um período que tem tudo para ser conturbadíssimo.

[Yassin é] o mentor do terror palestino e um assassino em massa que está entre os maiores inimigos de Israel
(ARIEL SHARON, premiê de Israel)
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Sharon, ao lado de Bush, representam o que há de pior entre os governantes do mundo contemporâneo. A retórica anti-terrorista vem legitimando (ou tentando legitimar) barbarismos os mais variados, desde o ataque às torres gêmeas. Nem quero falar aqui sobre a invasão norte-americana ao Iraque e as famosas armas de destruição em massa que nunca existiram...

A própria crise em Israel é, em boa parte, culpa de Bush. Os republicanos – em sua maioria tão provincianos quanto Bush – o colocaram no poder, mesmo sabendo tratar-se de um imbecil completo no que tange à política internacional. Os debates antes da eleição atestavam isso. Ganhou porque tinha carisma, porque falava espanhol, porque era republicano e porque o sistema eleitoral norte-americano, paradoxalmente, é atrasado. Todo o progresso realizado pelo governo Clinton em Israel, nos oito anos anteriores foi jogado no lixo por Bush Filho (o complemento é ao gosto do freguês).

Eu poderia falar aqui sobre Berlusconi e Blair, mas chega de falar de coisa-ruim.

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quarta-feira, março 10, 2004

Passividade

Recebi algumas reclamações de meus leitores, sobre a ausência de posts novos no Blog. Reclamaram também de meu umbiguismo: segundo um crítico, eu estaria fugindo à idéia do Blog para entregar-me às declarações apaixonadas - aos poemas de amoregozo...

Discordo disso: dedicados ou não, os poemas são apenas rascunhos, espasmos, coisas do gênero literário desconhecido/manjado que pratico, ou seja, não fogem à regra (arg!) do Blog.

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(A interação da parte de meus leitores pode contribuir grandemente para a "alimentação" do Blog, meus caros. Por isso, se alguém visita este troço (além de pessoas queridas queridas), faça o favor de interagir. Isto aqui não é televisão, "broadcast", comunicação verticalizada: é Internet, meu povo; é o novo "Espaço Público" (com e sem controvérsias). Preciso da participação de vocês pra acreditar que isso aqui não passa de uma armadilha do meu ego, para acreditar que o diálogo (via novas mídias) é realmente possível).

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VELHIDADES


Para atender a pedidos, estou atualizando o Blog. Mas farei isso de forma meio canhestra: vou postar textos velhos: posts novos de textos velhos -- dá pra sacar o paradoxo disso? Se não dá, pensem no primeiro parágrafo deste post ("Quem tem ouvidos de ouvir...").

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O texto abaixo trata-se de uma viagem/revolta (é, é... já fui um revoltado) com a estrutura da Educação no Brasil. O Post, que segue tosco, sem alterações, foi escrito há mais ou menos dois anos. Se alguém perceber evoluções ou regressões ao comparar os textos daquela época com os da safra atual, manda cá uma psicomentário: vou gostar de discutir isso.

USOS E USOS


Uma das questões que considero fundamental a ser discutida, quando se pretende pensar o futuro da humanidade é a da técnica. E quando se vai discutir a questão da técnica é inadmissível esquecer o importante papel desempenhado pela educação nos desdobramentos que podem surgir dessa discussão.

A educação moderna... não é moderna. Não uso o termo moderna aqui no sentido histórico, da modernidade, mas no sentido de atual, de contemporânea. Ainda aprendemos matemática no ensino fundamental!

Antes de jogarem pedras, leiam bem: não questiono a importância dos saberes matemáticos para a civilização - se fizesse isso Descartes sairia de sua cova para entrar em contenda comigo. Questiono, isso sim, a inutilidade de acumular determinados saberes nessa área que considero dispensáveis. Dispensáveis não por que não serão usados. Dispensáveis por que há maneiras mais práticas, mais simples, de utilizá-los sem precisar perder tanto tempo estudando-os. É aí, nesses saberes, nos matemáticos, que deve ser dado espaço à técnica, mais precisamente, à tecnologia. Sem subestimar a capacidade humana (afinal, fomos nós - os humanos - que criamos as máquinas... blá, blá, blá...) devo dizer que, para calcular com exatidão, os computadores são muito mais competentes do que nós, os mortais. Por que não substituir boa parte do tempo dispensado no ensino fundamental e médio ao ensino da informática, da lógica, em vez de ensinar matemática. Ou melhor, por que não substituir o lápis, a borracha e o quadro negro pelos teclados e monitores para ensinar matemática? Num mundo onde as contradições, os paradoxos e as "perplexidades" (termo caro a Boaventura de Sousa Santos) abundam, por que perder tempo estudando Equação do 2º grau quando se poderia estar aprendendo a desenvolver a capacidade de pensar, de solucionar problemas? Sabendo isso, a parte chata, maçante, repetitiva, poderia ficar a cargo dos computadores. Que se estudasse a teoria da matemática então, para entender o porque de sua existência, quais as suas aplicações. Mas que não fossem perdidas horas de estudo na resolução de exercícios profundamente entediantes, que não representam nada para quem os estuda simplesmente para fazer uma prova e passar de ano.

Este é o primeiro ponto que gostaria de destacar. A informática pode, aliás, deve ser usada para que possamos poupar o tempo que é gasto com coisas menos importantes para usá-lo em questões de relevância.

O segundo ponto é o seguinte: por que tentar manter esta aura quase sagrada em torno do ensino? Porque resistir à introdução das novas tecnologias para facilitar o ensino da física, da biologia e da química, por exemplo? Por que não colocar a televisão - a grande inimiga dos intelectuais - dentro de sala de aula? Por que não usar o feitiço contra o feiticeiro. Tentar eternizar certos procedimentos arcaicos é apressar sua extinção. A educação deve estar mais perto de Heráclito que de Parmênides. Precisamos de movimento, de dialética. Precisamos ser contaminados pelos delírios de McLuhan e romper um pouco com a linearidade estática da escrita. Não para superá-la, não para colocá-la em segundo plano ou considerá-la inferior às novas formas de comunicar. Devemos romper com a aura que gira em torno da escrita e que acaba por torná-la um bicho-de-sete-cabeças que assusta. Chega de aristocracia. Tudo o que pode ser usado para libertar o homem deve ser usado. Se isso não for feito, se a tecnologia continuar a ser vista como um monstro que só serve para deixar as pessoas cada vez mais estúpidas ela irá se tornar esse monstro. Para dominar o monstro é preciso compreendê-lo, tornar-se íntimo dele, seu amigo, para usá-lo a nosso favor. Se resistirmos, seremos engolidos por ele, que será comandado pelos que não o temem.

Fiquemos apenas nesses dois pontos positivos no uso da técnica por aqui. Há outros exemplos de como a tecnologia e a técnica podem ser utilizadas para o "bem" do homem. Poderia ter citado aqui a Internet, por exemplo, e as idéias se multiplicariam. Mas creio que esses dois pontos são suficientes para compreender como a tecnologia pode ser usada para mudar profundamente a estrutura debilitada de nosso sistema de ensino.

Direi aqui algo que é quase chover no molhado: a técnica, por si só, é neutra (ao contrário da ciência, mas prefiro não entrar nesse ponto para não ter de multiplicar o tamanho do texto). O uso que fizemos dela é que irá torna-la boa ou má. Entregar-se à tecnologia, entrar de cabeça, de corpo e alma nela, como se ela fosse a salvação do mundo, a solução para todos os problemas, não duvidar dela, não criticá-la, numa atitude neopositivista, é estupidez. Ensinar informática a pessoas que não sabem pensar, pessoas condicionadas, que às parcas noções de ética que têm não dão a mínima importância, é suicídio.

É aí que entram as ciências humanas. O humano deve estar por trás da técnica. Para lembrar Habermas e o pessoal de Frankfurt, a racionalidade instrumental não pode invadir o "mundo vivido". Permitir que pessoas que respiram o sistema, já impregnadas por sua máquina, pela burocracia, pela Indústria Cultural, pela Ideologia dominante, pela superestrutura... permitir que essas pessoas dominem a técnica é quase permitir a controle da técnica pela própria técnica. É abrir mão de nossa humanidade.

Se considerarmos que só porque a tecnologia tem empregado a maior parte das pessoas no mundo atual, devemos ensinar menos história e mais informática, menos sociologia e mais lógica da programação etc., estaremos perdidos. É justamente o contrário. As tarefas que tomam tempo do estudante - como a questão da matemática, levantada acima - devem ser entregues à tecnologia. O tempo que sobrar deve ser entregue às humanidades. Precisamos de mais sociologia, filosofia, história, ética, psicologia, comunicação e menos de raiz quadrada. Precisamos mais aprender a debater, a dialogar, a argumentar, a discutir, a fazer funcionar o "espaço público", a descolonizar a lebenswelt ("mundo vivido), do que calcular logaritmos (que, por sinal, fiz questão de esquecer o que é assim que entrei na Faculdade).

Esses são alguns apontamentos que gostaria de fazer às pessoas envolvidas com o ensino, seja em qual for o nível. Há muito para ser lido nessa área, desde Virilio e Habermas até Levy e McLuhan. É preciso abrir novos horizontes de pensamento se quisermos que a capacidade de pensar continue sendo uma aptidão humana - assim como a capacidade de viver.

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Repararam no tom panfletário que o texto assume em determinados momentos? Dá pra observar a influência de certas leituras? E as pretensões poéticas na última frase? E os ensaios retóricos, dá pra percebe-los?

Tempo, tempo... faz cada coisa com a gente!...

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Ócio Critivo?

O conceito de Ócio Criativo (ou o Elogio do Ócio, de Bertrand Russel), do sociólogo Italiano Domenico de Masi são abstrações cada vez mais etéreas na minha cabeça. Os problemas do dia-a-dia me absorvem de tal forma que fica impossível não apelar para o marxismo (e para a auto-comiseração) para dizer que é preciso dar fim à exploração do proletário pela burguesia capitalista.

Mas discursos panfletários, definitivamente, não são o meu forte. Contudo, acho que refletir acerca da crueldade de certas imposições sistêmicas deveria ser uma obrigação para as pessoas.

Alguém disposto a tentar descolonizar o "mundo vivido" (ver Habermas)?

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terça-feira, março 02, 2004

Cadê?
Para Carissa

E essas coisinhas (lindalindas),
que aparecem assim e -
até quando mudas -
mudam tudo?

Novos olhares, mãos e sensações:
a vida sob nova direção -
tudo (re)enquadrado.
Novos enfoques, novas narrativas:
evasivas contidas por palavras e gestos e
e a ausência do não -
este vão que só faz afastar.

Horas que
perdeganhamos
sem dar-se conta,
sem lutar contra
(remando remando
por cada lugar!)...

E o medo, cadê?
E cedo, o que é
quando se tem sede,
quando se está verde
novamente
ou quando - descobertos -
redescobrimo-nos
capazes da beleza
outra veZ?

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