terça-feira, setembro 27, 2005

A DANÇA



Aprendera dançar num salão amplo e arejado, onde podia dar vez aos rodopios ciganos que lhe subiam dos tornozelos para as coxas, para o ventre. Dessa liberdade guardava boas lembranças e os espaços reduzidos de agora deixavam-na sem ar, vítima de um peso celestial que exigia dela respeito e temor. Sua dança ficara mais contida, deixou de girar, abdicou dos passos largos – mantinha firmes os pés no chão. Esses movimentos migratórios tornavam-na vociferante, malditas hordas civilizadas essas que se estabelecem, sem pedir licença, nos espaços vazios que antes eram só dela e de seus amigos e de seus convidados e dos seus, dos seus.

Os encontros, aos poucos, foram perdendo a graça. Sua dança converteu-se num eterno esquivar-se e ela, sinuosa e fria, ganhava feições de serpente e gestava peçonhas mortíferas na órbita dos olhos turquesa. Seus olhos, agora, serviam para inocular veneno potentíssimo, fatal. Tomara gosto pela destruição, pela morte, pela ceifa. Fizera-se dura, rija, perdera a graciosidade dos movimentos, embora sua figura ainda exercesse um demoníaco poder sobre toda sorte de homens, mulheres e felinos que dela se aproximassem. (Era o fascínio da morte, seu irresistível mecanismo de atração e repulsa tão caro ao ser humano. A morte é o destino que nos atrai, nosso signo mor, nosso fim).

Na lida diária perdera o gosto pela vida, tornou-se mais esquemática, cedeu a um ou dois modelos de conduta e de outros tantos fez uma salada que a nutria perfeitamente: na medida exata do sobreviver. Quando descobriu que sua arte – sua dança, sua corporeidade – tornara-se marcha (de progresso), já era tarde para voltar, para procurar novos bailes, novos salões. Lamentou um pouco a perda do lastro com o passado, mas nada que – em sua versão marmórea – resultasse em lágrimas ou lamúrias. A inflexibilidade tocara-lhe os ossos. Agora era olhar para frente e seguir o ordinário.

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