
Cinema, cinema, cinema em primeiro plano. O segundo, fica por conta da sala de espera. Sala, não: café. Desfile de pernocas louras diante de mim. O livro aberto é sempre um refúgio para quem preza o anonimato.
Ela chega com uma roupa clássica, quase quê. O jeito de cruzar as pernas e acender um cigarro me leva a pensar que ela acredita participar de um filme noir de veia francesa. Estivesse ela agora usando um chapéu de abas largas – lá estaria eu a batizá-la Margot. Mas não. Não usa chapéu, mas tranças, que lhe dão um ar paradoxal ao deixá-la a meio do caminho entre a Lolita e a feme fatalle. Não é nem uma, nem outra: é casada. O marido chega atrasado e dá-lhe um beijo formal. Mal roçam os lábios.
Engatam numa conversa do tipo “como foi seu dia amor”. Na mesa ao lado, um grupo de adolescentes suscetíveis começa a sentir os efeitos das duas rodadas de chope. Perco alguns trechos do diálogo do casal Jean Pierre e Margot. (Pensando bem, ele parece americano. Estivéssemos num filme, chamá-lo-ia Bob, e temeria por minha vida por saber que se trata de um político influente e mal-caráter, com tentáculos espalhados pelos quatro continentes e meia dúzia de paus mandados no Pentágono). Bob está nervoso e acende um cigarro de filtro amarelo e marca duvidosa para relaxar. Margot começa a perder a descontração dos primeiros minutos de espera. Seu olhar, de repente, se extravia e a imponência de há pouco vai embora. Estivéssemos num livro, chamá-la-ia Mrs. Dalloway.
Bob reconhece um amigo a subir as escadas. Dá um sorriso e grita uma saudação que não compreendo bem, porque uma das adolescentes da mesa ao lado acaba de me pedir fogo. Estendo isqueiro para a pequena sem prestar a atenção devida. Ela agradece e volta para o seu bando. À mesa de Mrs. Dalloway, soma-se agora um tipo de porte médio, cabelos pretos, lisos, escorridos, grossos e um tanto desgrenhados. Usa a camisa meio aberta e estampa no peito um colar. Estivéssemos num filme, chamá-lo-ia Pedro Sanches – e trataria de ocultar-me no balcão do bar pra que ele não reconhecesse meu rosto, já que circula o boato de que el hombre comanda um dos maiores grupos da máfia cubana em Los Angeles – mesmo sendo porto-riquenho.
Mrs. Dalloway (des)concentra-se agora brincando com um isqueiro. A essa altura desisti completamente de descobrir a cor de seus olhos. Percebe-se: está entediada. A presença de Bob a incomoda e a de Sanches causa-lhe pavor. Sanches, por sua vez, também não presta atenção exclusiva à conversa: divide-a entre a eloqüência conspiratória de Bob e as pernas de Mrs. Dalloway. Bob concentra-se em si mesmo e, à medida que se embebe das próprias palavras, vai se aproximando mais e mais de Sanches, jogando-lhe no rosto toda fumaça do cigarro. Bob, Bob: tem o péssimo hábito de falar com a fumaça nos pulmões. Mrs. Dalloway, que percebe-se imperceptível, fuzila o marido com os olhos. Aparentemente odeia-o. Estivéssemos num filme, chamá-la-ia Nikita.
A raiva parece tomar conta de Nikita. Num movimento brusco, levanta, atraindo a atenção de Bob por um breve instante. Toma da bolsa e, num átimo, vejo-a tirar dali uma graciosa e pequenina pistola, com a qual dará um único e certeiro tiro na têmpora esquerda de Bob. Mas minha imaginação é fértil. Fértil demais. Ela apenas se levanta e vai em direção ao banheiro. Estou, agora, entre ela e sua meta. Não há como não trocarmos olhares. Não há como não. Mas acontece. Não trocamos olhares. Nikita olha firme para frente. Os olhos, castanhos de ódio. Estivéssemos num filme, diria que – que a sessão vai começar. Chamo o garçom, pago minha conta e corro para a fila. Nikita vai se atrasar, penso. Alguém toca meu o ombro.
“Me empresta o fogo?”
É a adolescente da mesa ao lado. É pequena e tem cabelo castanho-claro – quase louro. Humbert, Humbert. Estivéssemos num Kubrick, chamá-la-ia Lo-li-ta: “a língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca”...
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