“Que princípio poderia fundar uma pessoa num mundo ‘oceânico’?” (Galp Harphan).
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“Um ano depois, em 8 de agosto, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo dos Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Émerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado galã do faroeste”.
(Da reportagem À Espera do Assassino, sobre o conflito por terras em Altamira, no Pará. Matéria publicada na revista Época nº 393, de 28 de novembro de 2005).
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“Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que sabe como é viver jurado de morte, mas não sabe. Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo pra não andar mais, porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada. É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando a máfia de Castelo dos Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida”.
(Da mesma matéria, o relato de Maria de Fátima da Silva Nunes, que bateu de frente com os pistoleiros de Castelo dos Sonhos).
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Como começou a matar?
Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba [“a polícia dos fazendeiros”] nas fazendas
O que sentia quando matava?
Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu lembro até hoje.
(Trecho da entrevista com um pistoleiro de Castelo dos Sonhos, responsável pela morte de 16 pessoas em Castelo e no Mato Grosso).
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A violência choca mais quando carente dos filtros do tempo ou da película. A reportagem da qual foram extraídos os textos acima descreve uma situação que acontece hoje, em 2005, no norte do país. Algo que acontece enquanto eu e você, raro leitor, repousamos tranquilamente diante de nossos PCs.
Há poucas décadas, Hanna Arendt tentou descrever os horrores do nazismo por meio do conceito de “banalidade do mal”. Se a teórica foi feliz em sua analise do nazismo é algo que se pode discutir por horas a fio nos círculos intelectuais e acadêmicos. O fato, no entanto, é que a banalidade do mal existe hoje, como existiu nos tempos de Hitler, nos tempos de Roma, nos tempos de Cristo. O progresso da humanidade é mera ilusão de ótica. Hegemonias engolem hegemonias o tempo inteiro, mas sempre, em todo absoluto, há vestígios do relativo. Em todo futuro há um naco de pré-história que insiste em se fazer ver, como a espinha purulenta que estoura na véspera do baile. Assim como os cordéis guardam traços da Europa medieval, os conflitos do Pará têm um quê de velho-oeste, um toque de Brasil colônia, um punhado de selvageria. O que não falta no mundo são bolhas das quais as “conquistas” da modernidade passaram longe ao longo do último século. Por aí a gente que mata ou morre como vive: carente de qualquer sentido.
Quando se fala em adolescentes acéfalos, em universitários vazios ou em patricinhas de cabeça-oca pode-se recorrer à psicologia mais rala e encontrar justificativas fáceis para explicar a imbecilidade generalizada. Fala-se da influencia perniciosa da televisão, da ideologia consumista, da ausência de limites dos filhos da geração de 68. Fala-se de qualquer coisa e funciona. Porque se trata de um mundo comum, um universo simbólico compartilhado por quase todos os seres urbanos nascidos no século XX.
A perplexidade vem no bojo dessas bolhas, dessas ilhas que, quando postas lado a lado, compõem um quadro terrível. O iluminismo não ilumina o Islã, como não fez com o nazismo, como não faz com a favela, como não faz com o Pará. Essas são realidades que o “etos branco” não sabe encarar. Uma lógica que escapa à grande maioria dos ocidentais. Nós sabemos conviver com a neurose, com a psicose, com os surtos esporádicos. Com o mal banalizado, não. Esse não se explica tão facilmente por meio de edipozinhos e pulsões disso ou daquilo. Esses mundos nascem da violência mais pura: aquela que só o é para quem está de fora. São mundos nos quais a violência passeia pela rua, invade as casas, toma cachaça nos botecos. É a violência que mata bebês e, quando muito, solta um “oh, dó” – que só dura até o próximo disparo, até o próximo incêndio. Mundos onde os corpos pouco valem. Mundos bizarros. O horror, o horror.
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Aproximação conflituosa esta que nós, os seres urbanos, mantemos com esses universos. No peito, mais do que na cabeça, a velha dança dos opostos: convivem, dialeticamente, o fascínio e o medo, a curiosidade e o horror. Há nessa barbárie toda uma beleza macabra, sombria. Um horror surge de nossas entranhas, como se tudo isso, no fundo, também constituísse uma parcela sinistra daquilo que somos (ou pensamos ser). Os olhos, vidrados, buscam a explicação no vazio.
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“Estava pensando em tempos de muito atrás, quando os romanos aqui chegaram pela primeira vez, há novecentos anos – ainda outro dia... A luz emanou deste rio [...]. Ainda vivemos na luz bruxuleante – possa ela durar enquanto a terra continue a rodar! Mas ainda ontem as trevas estavam aqui. Imaginem o comandante de uma bela – como é que se diz – trirreme no Mediterrâneo, a quem de repente se ordenasse seguir para o norte. [...] Imaginem ele aqui – o próprio fim do mundo, um mar cor de chumbo, um céu cor de fumo, uma espécie de barco rígido como uma concertina – subindo este rio como provisões ou ordens ou o que vocês quiserem. [...] A morte esgueirando-se no ar, na água, no mato. Deviam aqui morrer como moscas. [...] Desembarcar em um pântano, marchar pelos bosques e, em algum posto interior, sentir que a barbárie, a completa barbárie, os cercava [...]. Tinha que viver no meio do incompreensível, que é também detestável. E há também o fascínio que começa a se exercer sobre ele. O fascínio do abominável”. (Conrad, Coração das Trevas).
“Se Kurtz tem fascinado romancistas e cineastas é porque, perante a expansão do Ocidente, revela o aspecto sombrio, macabro, que chega ao ponto de tornar seu etos irrepresentável. Nesse sentido, suas palavras finais, ‘The horror, the horror’, são a formulação mesma do que não cabe em palavras – o irrepresentável é o inominável” (Luiz Costa Lima em O Redemunho do Horror: as margens do Ocidente)
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