terça-feira, setembro 05, 2006

"Vai ser engraçado voltar a escrever no Psicotópicos"

Foi o que pensei antes de começar este texto. Há um quê de idiotice nisso, eu sei, mas não havia modo de se esquivar. O último texto postado data de 12 de fevereiro. Nossa! É muito tempo. De lá pra cá muita água passou por debaixo da ponte de Guarapari. Água que, de julho pra cá, deixei de acompanhar. A ponte mais próxima de mim agora é a Rio-Niterói. Minha casa, agora, é o Rio.

Casa algo bagunçada, mas sem dúvida encantadora. O Rio é um ótimo lugar para perder-se, só pra se achar numa das vielas, num dos botecos ou mesmo nas areias de Ipanema.

O engraçado de escrever não é simplesmente voltar a fazê-lo. O cômico (surreal?) tem a ver com o lugar de onde saem os discursos. Já não cabem aqui as lamúrias de outrora e muitos dos protestos e imprecações contra o sistema precisam ser vistas sob um novo prisma. Nada a ver com mudança de valores. O que mudou - e muito - foi o ponto do qual passei a observar o mundo. Mudou o lugar do observador. Mudaram os objetos observados. Meu mundo -- meu mundo mudou horrores. Salto, giro, vertigem. É o novo.

Sim, agora eu estou do outro lado. O outsider de outrora, sob vários aspectos, fez-se insider: há em mim um quê de invasor, um sentimento complexo de estranhamento e inadequação que vem acompanhado de um sorriso de deboche: "Aí, seus merdas, fodeu! Eu entrei! Já era! Perdeu!".

Tá bom, talvez seja preciso explicar às pessoas, afinal, tanto ostracismo fez do Psicotópicos (como de mim) um espaço outro, com nova cara, com novas regras e descaminhos outrora impensáveis. Vamos lá, sem mais embromações: agora eu sou funcionário da Petróleo Brasileiro SA, vulgarmente conhecida como Petrobras.

Sim, eu sei, quem diria, né? O frequentador do Fórum Social Mundial, o crítico severo da Folha, o anti-imperialista!

O fato é que não mudou muita coisa nesse campo. Continuo com uma série de convicções muito bem sedimentadas aqui dentro. Hoje acredito que há um trecho da vida em que certas coisas são tatuadas na gente. Grudam na pele para seguir conosco até o fim de nossos dias. Muitas dessas tatoos foram feitas aqui, no Psicotópicos, letra por letras, frase por frase, texto por texto. A nova realidade impõe apenas mudanças táticas, reposicionamentos, readequação de discursos. O novo ponto de observação possilita um olhar mais apurado das entranhas do business world. As brechas sistêmicas de outrora surgem agora como rombos, crateras, fendas geológicas que clamam por intervenções. Daqui, a sensação de impotência é bem menor. O mundo parece mais maleável. E os "vencedores" ainda mais tolos. (Não cabe aqui a discutir a apatia que viabiliza esse domínio do reles mortal pelo tolo mor, mas é um assunto que sempre merecerá ser (re)pensado).

O Psicotópicos volta, enfim, com outra cara, num outro tempo, num outro espaço. Enquanto houver sol, ainda haverá energia renovável!

E é issaí.

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domingo, fevereiro 12, 2006

ROSTOS



O que pode um rosto comum? O que pode uma câmera diante de um rosto comum? Essas duas perguntas me apareceram enquanto assistia a 10, de Abbas Kiarostami. Uma câmera, um carro, algumas conversas e: rostos. Rostos comuns. Rostos de mulheres. Rostos de mulheres iranianas, mais ou menos cobertos: descobertos pela câmera. Descobertos enquanto rostos femininos, e ponto. Mulheres do mundo, falando de coisas banalmente sérias, que podem acontecer tanto em Teerã quanto em Vitória. Rostos, frases, silêncios.

A naturalidade que atravessa os personagens do filme – que muitas vezes nem parecem personagens --, a câmera que muitas vezes nem parece de cinema, o áudio que muitas vezes parece o de todo dia – tudo isso junto para fazer do cinema um espelho capaz de gerar reflexos do mundo. O país das maravilhas está dentro desse espelho, revela-se na possibilidade de refletir a trivialidade do dia-a-dia para torná-la observável aos que, nela submersos, não conseguem apreende-la em sua eloqüência, em sua profundidade, em sua força dramática.

Num artigo para a Folha de São Paulo (12 de fevereiro/2006), intitulado Vidas em Liquidação, o psicanalista Jurandir Freire Costa tratou dos abandonos de bebês pelos pais que tanto ocuparam a mídia ao longo das duas últimas semanas. Tratando da banalização da vida, escreveu:

“Na presente crise de transcendência, a vida perdeu seu secular centro de gravidade valorativa, representado pela religião, pela política e pela moral privada familiar. Essas agências foram destronadas pelo impacto imaginário da ciência, da economia e da indústria do espetáculo. Atribuir valor à vida, hoje, requer um esforço permanente do sujeito para se deslocar de uma perspectiva para outra”.

Talvez o caminho apontado por cineastas como Kiarostami seja importante para pensarmos essas questões. Mostrar a vida, os encantos da simplicidade, pode ser mais útil num mundo moralmente despedaçado do que horas de discursos na ONU. Muitas vezes a mudança de vida depende de um momento de reflexão. Um instante capaz de nos fazer perguntar: pra onde estou indo? Esse instante pode estar num dos tantos silêncios que se sobressaem na verborragia árabe dos personagens de Kiarostami. Talvez seja possível encontrar aí a transcendência defendida por Costa. Talvez seja.

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sexta-feira, fevereiro 10, 2006

INTERDICÇÕES



Queria interdicto: a marvada carnexpressava em palavrazias o dissentido por mim. Queria interdicto queixumes só pra violentar o indevassável: o inexprimivelmente doloroso do momento em si (mesmado entre mim e ti). Queria interdicto nadadeiras capazes de (a)fundar princípios, meios e fins em teu oceano. Queria interdicto tanta coisa! – mas fui cortado pelâmina silente de meu pretérito imperfeito. Carecia de autoridade pra verter o gesto fundador do teu mundo, admiravelmente ovo, afinal, “no princípio era o verbo e o verbo era Deus”: diante do infinito, não poderia interdicto mais nada. Interditado, calei.

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quinta-feira, fevereiro 09, 2006

MELHOR GUARDAR, NÃO?



Queria ter dito a ela o quanto aquele nada foi importante. Tinha pra mim que o segredo do existir é encontrável na fugacidade de certos instantes: cabe saber fotografá-los: a revelação acontece no escuro, na calada da noite, no silêncio da cama vazia. Não deu tempo pra articular todo o sentido em palavras. Não me cabia mais aquele sentir. Pulava de mim, do osso, do peito. Não consegui dar outra forma ao meu querer que não fosse esta: a da insônia. E converti em pulsões mil – só pra complexificar tudo – aquela linha pura que se estendia na verticalidade de nosso encontro. Naquele ponto onde nos cruzamos, no ponto xis: quando fomos juntos. Onde? Ontem, sim, lembro como se fosse hoje. A receptividade (o convite) surgiu espontâneo, como quem pega pela mão e diz: “vem”. Eu fui, fomos, o quê? Aquilo, sim, sim, aquilo que não cabe – não coube, não é – em palavras. Aquilo que era em si o inarticulado. De articulado, apenas o que nos ia, nos arrastava. Foi ali, sim, ali no parapeito (nada mais apropriado pra conter um coração!). Na hora, nem entendi direito. Espécie de torpor. Visão, visagem, satori: o que estava entre a gente nos escapava. Fugimos. Perdemo-nos. Agora, o negativo – este negativo aqui – revela o que foi (e já não é). Não sei como entregar a ela o sentido, o vivido. Melhor guardar isso aqui, guardar comigo. Pras gerações futuras, quem sabe?! Se nestes corpos (celestes) houver perenidade suficiente pra tanta vida! Se houver vida! Se houver vida! Viva!

Melhor guardar isto aqui. Não?

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terça-feira, fevereiro 07, 2006

DA ARTE DO À VONTADE



A arte do à vontade consistia em esfregar nas fuças da esfinge o grosso de nossa ignorância, só para, ao final, ter o prazer de deixar-se devorar por ela. Lembro agora dos maus modos, aquele jeito desleixado de percorrer a casa de calcinhas (era bom o contado da língua e do algodão: saliva, água, boca: a santíssima trindade: nosso dogma: nossa profanação). O percurso todo foi percorrido sem que ela se desse por conta (o corpo, a trilha do corpo, os cheiros do corpo: um corpo é um corpo é um corpo). A apoteose silenciosa do despir-se toda. E a língua, grávida de obscenidades renascidas entrementes e claro claro claro corpos, sempre os corpos: zona proximal fonte infinita de nossas ciências. A arte do à vontade consistia em esfregar nas fuças da esfinge o grosso de nossa ignorância, soprar no final – e descobrir o que nasce pelo meio: nosso único fim.

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À MESA



Era senhor do gasoso. Seus gestos feneciam no ar, esfumaçavam-se. Entre eflúvios alcoólicos (e dores de cabeça) era possível assimila-lo (ou somatizá-lo, por que não?). Morava ali o sentido de suas palavras. Num deixar-se ir, indo. Sua aparição era sintomática. Dizia das agruras existenciais pelas quais passava o outro que era eu. O outro que procurava um tanto a esmo por fagulhas de vida – entre um compromisso urgente e uma tarefa importante. Toda essa (ir)realidade estava presente, posta à mesa, mas não podia ser pautada – assim estabelecia o acordo tácito fixado entre os presentes.

Como todo jogo, o deles também tinha suas regras (e suas exceções). A do outro, que era eu, o líquido, tinha a ver com as pernas da Srta. à minha esquerda. Prenhe de euforias, ela – a Srta à minha esquerda – trazia à atmosfera lúgubre e carbônica daquela mesa ares hálitos e vespertinos. Não fosse pelo que havia de interdito no contexto subentendido por todos, não pairava dúvida de que era tão somente ela o prato principal, o manjar tão esperado pelos esfomeados que ora entravam em confraternização. Era ela o elemento desejo: o elemento fogo, a seta, o alvo. Consistia o jogo, em verdade, na tentativa desesperada de causar-lhe boa impressão, arrancar-lhe sorrisos, por mais inútil que fosse a empreitada.

O gasoso, o líquido, o sólido, tudo convergia para um só e único ponto: ela. Da interdição que era o outro – o outro mesmo, o sólido, não eu – nascia a nossa dança. Um balé desordenado e belo feito de palavras de palarvas depravados. Dentre tantos palavrões e obscenidades, a perversão nascia do silêncio guardado entre as pernas.

Ela: a síntese de nossos estados.

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domingo, dezembro 25, 2005

VEM VER OS FOGOS



Vem ver os fogos comigo! Senta aqui, sente o restinho do calor da tarde que ainda se esconde na areia. Olhe o céu, como está iluminado! Fogos, fogos de artifício (feito nosso amor: inventado). Faça planos agora, linda. Aqui tudo é permitido. Faça promessas, juras de amor, diga que as coisas serão diferentes “no ano que vai nascer”. Diz que o que passou, passou! Seja comum,comungue com a multidão. Seja trivial, seja repetitiva: vale tudo agora. Ouviu isso? Outra garrafa de champanhe. O estourar da rolha, eu sei, confunde-se com a balbúrdia dessas pessoas felizes e embriagadas e iludidas. Mas o líquido está lá, mágico! Pega essa taça aqui, enche de champanhe, champanhe, champanhe pra gente! Pra gente comemorar as derrotas que nos fazem mais humanos, os equívocos que garantem nossa história! Vai, amor, traz pra cá um pouco dessa embriagues que já toma conta da orla, do oceano, de Iemanjá! Coloca nossos sonhos num barquinho, mas não esqueça do agrado, do perfuminho doce, do baton vermelho, da cocada branca. Vamos negociar nosso futuro com os deuses primitivos, vamos rufar tambores, sentir tremores, batucar, entrar em transe. Vamos fazer amor aqui, minha linda! No meio da multidão, entre as oferendas e velas, entre os dentes. Vamos, vamos, vamos fazer amor pra começar o ano com um orgasmo cataclísmico, multiplicado por esta alegria que só existe na esperança do novo, na mudança, na redenção. Toma outro gole, vai! Bebe, bebe até esquecer de tudo, até vomitar línguas arcaicas e gargalhar e tremer-se toda! Bebe, meu amor, porque o ano já se vai, já não é. Vai, bebe! Bebe, porque aquele tempo ficou pra trás – ainda que só por hoje, ainda que só por hoje.

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AS RUAS VAZIAS E O TAL ESPÍRITO



Procurei refúgio nas ruas para escapar à viscosidade do espírito natalino. Queria só um boteco razoável, quiçá a companhia de um ou dois seres humanos sem rumo – no direction home. Quem sabe uma cerveja gelada ou uma dose dupla de vodka com gelo e limão. Quem sabe um pouco de neutralidade. Um lugar qualquer – a nowhere – onde não houvesse luzes piscando ou bons velhinhos lançando risos bonachões na atmosfera.

Procurei refúgio nas ruas e encontre-as vazias, quase desertas. À meia noite – à hora dos gatos (todos) pardos – o mundo confraternizava ao redor de mesas bem decoradas e pratos típicos. Eu rodava, sobre duas rodas, pelos descaminhos desta cidadezinha meia-boca.

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Cansei deste espírito, desses cumprimentos efêmeros. Aos caros e às caras, desejo uma vida feliz. Que todos possam ser felizes durante os 364 dias do ano, assim o natal vai ter menos importância (e talvez os bares fiquem abertos e talvez a TV deixe de transmitir a Missa do Galo e talvez todos os filmes bíblicos sejam substituídos por reprises de A Vida de Brian).

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Estranho este sorriso no rosto das pessoas. Estanhas essas campanhas por um natal sem fome. É como se, por um momento, todo mal do mundo deixasse de existir – até o próximo “dia útil”.

E tomem musiquinhas alegres!

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O Dylan, o vodka, o gelo, a companhia ideal: eis-me aqui, imbuído de outro espírito. Melhor assim, melhor assim. E que São Nicolau nos livre da pieguice!

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terça-feira, dezembro 13, 2005

INTERIORRRRRRRRRR

Fazer jornalismo no interior é não fazer jornalismo. Esse é um dos dilemas que deveria ser levado em consideração pelos pesquisadores que discutiram a questão do desemprego entre os jornalistas no Colóquio Internacional Sobre a Sociedade da Informação.

O jornalismo de interior tem uma lógica própria, permeada pela política, pela incompetência e pela falta de critérios para discernir o que é relações públicas, o que é publicidade e, no pouco espaço que resta, o que é jornalismo. Jornalismo de interior só tem uma coisa que o aproxima do jornalismo “sério”: o dinheiro faz as máquinas girarem.

Não é novidade pra ninguém (pelo menos pra ninguém que acompanhe a imprensa com o mínimo senso crítico) que toda história da profissão foi construída em torno da política. Estão aí as biografias de Hearst, Chatô e Roberto Marinho pra todo mundo ler e aprender como se faz um, digamos, grande veículo de comunicação. Grosso modo, basta bajular políticos, construir uma base material (econômica, empresarial, etc.) e depois preocupar-se em ganhar a legitimidade/credibilidade junto ao público. (A Globo já está na terceira etapa. A Folha já estava desde os anos 80. A Veja entrou em colapso).

Os jornais de interior começam pelo caminho certo (certo não é a palavra certa, mas vá lá). Principiam pela bajulação política e partem para o tráfico de influências. Só nunca chegam à construção de uma “base material”, logo, a terceira etapa pode ser desconsiderada.

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Parece triste a situação dos jornais do interior. Mas é mais que isso: é trágica.

Não bastassem os perrengues financeiros, há um empecilho maior ainda para quem quer trabalhar de forma, assim... responsável. Falemos um pouco de Guarapari. Por estas bandas é praticamente impossível (praticamente é pra não parecer fatalista demais, embora seja este exatamente o caso) manter um jornal (mensal! mensal!) à base de anunciantes captados no comércio. Dá até pra fazer uma ou duas edições com uma forcinha dos conhecidos. É provável que o seu Joaquim da padaria enuncie com prazer na primeira edição do seu brilhante jornal, jovem Marinho! Mas na terceira ele vai começar a coçar os bigodes. Na quinta edição ele vai fugir de você, vai mandar dizer que não está. Lá pela oitava você vai ficar de campana na esquina da padaria pra tentar negociar uma permuta: “um anúncio em troca de três pãezinhos! É pegar ou largar, seu Joaquim!!!” (Ele vai largar).

Quando você finalmente entender que os padeiros, leiteiros e açougueiros não ganham assim tão bem para ficar dando dinheiro pro seu jornaleco de 2000 mil exemplares mensais, eis que surge a bifurcação: ou você corre pra debaixo da asa do Lindomar, o pedreiro – que virou garçon, que virou esperto, que virou político e agora é o vereador mais votado da cidade; ou você enfia seu tablóide... debaixo do braço e encara aquele concurso do INSS pra garantir seu pé-de-meia (e a cachaça do fim de semana, pois, acredite: você vai precisar).

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É claro que você pode ainda ser um daqueles aventureiros, sabe? Você tem uma grana em caixa, uma câmera digital, um gravador comprado na Vila Rubim e mais dois ou três amigos porras-louca que leram fragmentos de O Capital na adolescência e volta e meia entoam hinos oitentistas com refrões do tipo “a burguesia fede” ou “que país é esse”.

Sim, sim. Aí você monta um jornal de esquerda, quase punk-doom-hardcore-metal de tão raivoso. Nas primeiras edições você vai tentar arrancar (com dentadas, às vezes) impressões de seus leitores.

“E aí, leu?”.

“Heim?”

“O ‘Brado Visceral’, o jornalizinho que te dei semana passada”

“Ah! O jornalzinho! Claro!”

“E aí, e aí, o que achou?”

“O jornalzinho, sim, sim. Aquele que você me entregou. Bonito, né? Com umas matérias... Legal isso, né?”

Aos poucos você vai suavizando a linguagem. Em vez de “porcos capitalistas e neoliberais sem caráter” você vai escrever “os empresários”. Em vez de “horrendo modus vivendi da burguesia” você vai escrever “os hábitos de consumo da classe média brasileira”. Em pouco tempo você estará defendendo o Palocci e, se a ficha cair a tempo, das duas uma: vai ter uma crise de choro e ligar pra sua mãe pedindo dinheiro pra se inscrever no vestibular de Psicologia da UVV; ou vai encarar aquele concurso pro INSS...

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Pra não dizerem que sou pessimista, vou falar daquele tipo raro, aquela quase aberração, aquele ser único! O jornalista empreendedor e socialmente responsável. Esse tipo vai tentar fazer um jornal sério. Vai acreditar na técnica jornalística e terá o código de ética dos jornalistas (e o Observatório da Imprensa) como elementos básicos de sua liturgia. Ele vai tentar apurar matérias, produzir textos repletos de conteúdo, enriquecer a pauta!

Esse – é... – jornalista é caracterizado pelo brilho nos olhos no início – e pelas olheiras nos meses seguintes. No jornalismo interiorano, este desbravador vai se deparar com a má vontade da fontes, com o abandono das dos órgãos públicos de consulta, com bibliotecas infestadas de traças e com assessores de imprensa que consideram uma façanha produzir um release de 10 linhas.

Não dura muito em sua empreitada. Geralmente encara aquele concurso pro INSS – e passa em primeiro lugar.

Filho-da-puta!

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segunda-feira, dezembro 05, 2005

O FASCÍNIO DO ABOMINÁVEL



“Que princípio poderia fundar uma pessoa num mundo ‘oceânico’?” (Galp Harphan).

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“Um ano depois, em 8 de agosto, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo dos Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Émerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado galã do faroeste”.
(Da reportagem À Espera do Assassino, sobre o conflito por terras em Altamira, no Pará. Matéria publicada na revista Época nº 393, de 28 de novembro de 2005).

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“Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que sabe como é viver jurado de morte, mas não sabe. Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo pra não andar mais, porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada. É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando a máfia de Castelo dos Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida”.
(Da mesma matéria, o relato de Maria de Fátima da Silva Nunes, que bateu de frente com os pistoleiros de Castelo dos Sonhos).

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Como começou a matar?
Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba [“a polícia dos fazendeiros”] nas fazendas

O que sentia quando matava?
Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu lembro até hoje.
(Trecho da entrevista com um pistoleiro de Castelo dos Sonhos, responsável pela morte de 16 pessoas em Castelo e no Mato Grosso).

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A violência choca mais quando carente dos filtros do tempo ou da película. A reportagem da qual foram extraídos os textos acima descreve uma situação que acontece hoje, em 2005, no norte do país. Algo que acontece enquanto eu e você, raro leitor, repousamos tranquilamente diante de nossos PCs.

Há poucas décadas, Hanna Arendt tentou descrever os horrores do nazismo por meio do conceito de “banalidade do mal”. Se a teórica foi feliz em sua analise do nazismo é algo que se pode discutir por horas a fio nos círculos intelectuais e acadêmicos. O fato, no entanto, é que a banalidade do mal existe hoje, como existiu nos tempos de Hitler, nos tempos de Roma, nos tempos de Cristo. O progresso da humanidade é mera ilusão de ótica. Hegemonias engolem hegemonias o tempo inteiro, mas sempre, em todo absoluto, há vestígios do relativo. Em todo futuro há um naco de pré-história que insiste em se fazer ver, como a espinha purulenta que estoura na véspera do baile. Assim como os cordéis guardam traços da Europa medieval, os conflitos do Pará têm um quê de velho-oeste, um toque de Brasil colônia, um punhado de selvageria. O que não falta no mundo são bolhas das quais as “conquistas” da modernidade passaram longe ao longo do último século. Por aí a gente que mata ou morre como vive: carente de qualquer sentido.

Quando se fala em adolescentes acéfalos, em universitários vazios ou em patricinhas de cabeça-oca pode-se recorrer à psicologia mais rala e encontrar justificativas fáceis para explicar a imbecilidade generalizada. Fala-se da influencia perniciosa da televisão, da ideologia consumista, da ausência de limites dos filhos da geração de 68. Fala-se de qualquer coisa e funciona. Porque se trata de um mundo comum, um universo simbólico compartilhado por quase todos os seres urbanos nascidos no século XX.

A perplexidade vem no bojo dessas bolhas, dessas ilhas que, quando postas lado a lado, compõem um quadro terrível. O iluminismo não ilumina o Islã, como não fez com o nazismo, como não faz com a favela, como não faz com o Pará. Essas são realidades que o “etos branco” não sabe encarar. Uma lógica que escapa à grande maioria dos ocidentais. Nós sabemos conviver com a neurose, com a psicose, com os surtos esporádicos. Com o mal banalizado, não. Esse não se explica tão facilmente por meio de edipozinhos e pulsões disso ou daquilo. Esses mundos nascem da violência mais pura: aquela que só o é para quem está de fora. São mundos nos quais a violência passeia pela rua, invade as casas, toma cachaça nos botecos. É a violência que mata bebês e, quando muito, solta um “oh, dó” – que só dura até o próximo disparo, até o próximo incêndio. Mundos onde os corpos pouco valem. Mundos bizarros. O horror, o horror.

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Aproximação conflituosa esta que nós, os seres urbanos, mantemos com esses universos. No peito, mais do que na cabeça, a velha dança dos opostos: convivem, dialeticamente, o fascínio e o medo, a curiosidade e o horror. Há nessa barbárie toda uma beleza macabra, sombria. Um horror surge de nossas entranhas, como se tudo isso, no fundo, também constituísse uma parcela sinistra daquilo que somos (ou pensamos ser). Os olhos, vidrados, buscam a explicação no vazio.

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“Estava pensando em tempos de muito atrás, quando os romanos aqui chegaram pela primeira vez, há novecentos anos – ainda outro dia... A luz emanou deste rio [...]. Ainda vivemos na luz bruxuleante – possa ela durar enquanto a terra continue a rodar! Mas ainda ontem as trevas estavam aqui. Imaginem o comandante de uma bela – como é que se diz – trirreme no Mediterrâneo, a quem de repente se ordenasse seguir para o norte. [...] Imaginem ele aqui – o próprio fim do mundo, um mar cor de chumbo, um céu cor de fumo, uma espécie de barco rígido como uma concertina – subindo este rio como provisões ou ordens ou o que vocês quiserem. [...] A morte esgueirando-se no ar, na água, no mato. Deviam aqui morrer como moscas. [...] Desembarcar em um pântano, marchar pelos bosques e, em algum posto interior, sentir que a barbárie, a completa barbárie, os cercava [...]. Tinha que viver no meio do incompreensível, que é também detestável. E há também o fascínio que começa a se exercer sobre ele. O fascínio do abominável”. (Conrad, Coração das Trevas).

“Se Kurtz tem fascinado romancistas e cineastas é porque, perante a expansão do Ocidente, revela o aspecto sombrio, macabro, que chega ao ponto de tornar seu etos irrepresentável. Nesse sentido, suas palavras finais, ‘The horror, the horror’, são a formulação mesma do que não cabe em palavras – o irrepresentável é o inominável” (Luiz Costa Lima em O Redemunho do Horror: as margens do Ocidente)

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segunda-feira, novembro 28, 2005

MAIS 40 DIAS



Vieste-me trazer copos-de-leite. Logo a mim, que há muito não lembrava da leveza tranqüila dos teus gestos! Molhaste-me a boca com a tua saliva viscosa e fizeste da tua sede o meu alívio. Não quiseste me contar quem te dissera de meu definhamento, mas também não fizeste caso das fofocas que atribuíam a ti – logo a ti, meu amor! – as causas deste martírio. Sabedoria – sim! – sempre tiveste a sabedoria das feiticeiras! E teus olhos sabiam me ler como poucos. Tanto que prescindiste de meus balbucios para compreender que a razão de meu morrimento era outra e esta pouca relação mantinha com os doces estilhaços daquela nossa história. Tua presença oceânica me fez aspirar. Estava pronto, agora, para mais quarenta dias de tentação.

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domingo, novembro 13, 2005

CORTADO EM CUBOS

Uma leve mudança de posição na minha cama e descubro o modo mais confortável do mundo para escrever: deitado, com o teclado no colo e a tela do computador virada pra mim (com direito a cobertores e Coldplay nos dias de chuva). Podemos chamar isso de folga, eu acho.

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(Quando toca Green Eyes eu lembro da garota e me dá vontade de gritar “atenção, atenção” com todas as forças, só pro meu grito rasgar as Minas Gerais. Aí eu sorrio. Boas lembranças têm dessas coisas).

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Descobri que não consigo mais escrever para o Psicotópicos. Pelo menos, não com a mesma paixão. O estranho é que o carinho persiste. (A relação entre o blogueiro e seu blogue lembra tanto um casamento às vezes!). Aí eu entro aqui, dou uma relida, vejo que algum náufrago enviou sinal de fumaça, saio disposto a escrever um puta texto... mas nada. Inspiração: zero. Vontade de transpirar (nos teclados): menos um. Deixo o verão pra mais tarde e vou correr por outras coisas.

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“Run, Forrest, run”. Gump deve ter enlouquecido é de tanto ouvir essa frase. E como nos repetem isso no “mundo dos cheiros”! “Run, Forrest, run”. O tempo urge, move your body, get some money, do something!!! Lavagem cerebral eficiente essa. A gente grita, esperneia, berra, mas quando menos se... cá estamos em meio à multidão, disputando uma maratona tão cruel quanto absurda. Aí a gente olha pro lado e vê que não dá pra voltar, não dá pra parar, não dá pra resistir, “não dá pra não comprar, não dá pra não assinar, não dá pra não ler”! Na melhor das hipóteses, a gente arruma um jeito de correr por fora (ou de pegar uma carona com os batedores, que é sempre uma boa pedida).

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Como é que eu estou? Bem. Correndo por fora e fazendo sinal pros batedores. Se rolar uma carona, there we go!!! Se não? Keep walking (on the rocks, de preferência).

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E eu, que queria dizer de tanta coisa? Tanto a discutir, tanto a conversar, tanto a compreender! (Se ao menos vocês soubessem!). É tanto que nem sei por onde começar. (Mentira, sei sim: O melhor é começar pelo meio; e é isso que eu tenho feito: tenho estado no meio, transitando; mas isso é uma outra conversa, e não cabe ressuscitar deleuzianas agora).

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Sim, sim: este texto não faz o menor sentido. Mas, falando sério: o Psicotópicos carecia de um pouco de non sense, não? Tava ordenado demais, o pobre. Então, aqui vai. Posto este. Corro (olha a palavra chave aí outra vez!) o risco e clico em enviar. Aqui vai: message in a bottle (pra quem tem olhos de ler). See you soon.

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sábado, outubro 29, 2005

TOXINAS



As marcas ficaram no corpo, nos quilogramas perdidos, na carência lacrimal daqueles dois meses eternos. Sentia-se ainda habitada por aquela presença, por aquele corpo grande – aquelas mãos, aquelas mãos – passeando eternamente pela pele, pelo vão das coxas, pelas reentrâncias, pela sinuosidade de seu querer. Fez-se necessário um radical processo de desintoxicação – realizado na raiva fina e elegante com que ela queimou as velhas cartas de amor.

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A DANÇA



Servia-se da dança para sacá-lo do mutismo intelectualóide no qual ele se enfurnava. O corpo, nu, deslizava pelo quarto entre rodopios e risos agudos, infantis. Ele impunha pouca resistência, cedia logo aos apelos inarticulados daquela figura que escorria líquida pelas paredes, pela cama, pelas dobras do lençol e, sobretudo, pelos escassos pêlos de seu corpo adolescente. Fundiam-se numa mistura alcoólica, embriagavam-se um do outro, gozavam e dormiam assim, tendo por melodia o ressonar discreto próprio dos seres saciados.

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quarta-feira, setembro 28, 2005

AQUELE RISO SOLTO



A personalidade da mãe sempre tomou conta da casa. Seus gestos se espraiavam paredes, teto, telhado, mundo afora! Seu riso liberto tinha asas de libélula e cores de fada madrinha. O colo cálido, sempre presente, era repouso de guerreiros e guerreiras. Ela – a filhota, a caçula, a riqueza – provara cada fibra daquele afeto. A filhota, assim que ganhou corpo e sagacidade pra saber da própria sorte, entendeu o quanto a casa era feliz. A mãe – a do riso solto, a do colo cálido – sabia deixar ir e sabia deixar voltar; sabia, enfim, ensinar aos pequeninos seres alados que pipocavam impúberes pela casa as técnicas milenares do vôo livre que cria novos mundos, que cria vida, que cria amor e gozo. A filhota era grata – eternamente grata – por tudo isso. E naquele aniversário, comprou um presente assim ó escreveu coisas que só vendo pra acreditar, sabe? A mãe, olhos úmidos, agradeceu com seu melhor: o riso.

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BARGANHAS



O dever, para ela, encarnou no trabalho. A prisão diária em troca da liberdade parcial que o ordenado representava ao final do mês. Emprestava seu corpo – seu território sagrado – às arbitrariedades do que é menor para garantir a apoteose de cada sábado.

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NUMEROLOGIA



Ao corpo franzino e inviolável ela opunha a voracidade de sua boca para compor o objeto de desejo que representava na cabeça deles. Atravessara a adolescência entre volubilidade das festas americanas e as batalhas travadas contra sua vocação: a luxúria, o desvario, a visceralidade. Mantivera-se, por capricho, intacta até os dezesseis. (Desde cedo encantara-se pelas narrativas mitológicas e um mais seis é sete e sete é número mágico).

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terça-feira, setembro 27, 2005

A DANÇA



Aprendera dançar num salão amplo e arejado, onde podia dar vez aos rodopios ciganos que lhe subiam dos tornozelos para as coxas, para o ventre. Dessa liberdade guardava boas lembranças e os espaços reduzidos de agora deixavam-na sem ar, vítima de um peso celestial que exigia dela respeito e temor. Sua dança ficara mais contida, deixou de girar, abdicou dos passos largos – mantinha firmes os pés no chão. Esses movimentos migratórios tornavam-na vociferante, malditas hordas civilizadas essas que se estabelecem, sem pedir licença, nos espaços vazios que antes eram só dela e de seus amigos e de seus convidados e dos seus, dos seus.

Os encontros, aos poucos, foram perdendo a graça. Sua dança converteu-se num eterno esquivar-se e ela, sinuosa e fria, ganhava feições de serpente e gestava peçonhas mortíferas na órbita dos olhos turquesa. Seus olhos, agora, serviam para inocular veneno potentíssimo, fatal. Tomara gosto pela destruição, pela morte, pela ceifa. Fizera-se dura, rija, perdera a graciosidade dos movimentos, embora sua figura ainda exercesse um demoníaco poder sobre toda sorte de homens, mulheres e felinos que dela se aproximassem. (Era o fascínio da morte, seu irresistível mecanismo de atração e repulsa tão caro ao ser humano. A morte é o destino que nos atrai, nosso signo mor, nosso fim).

Na lida diária perdera o gosto pela vida, tornou-se mais esquemática, cedeu a um ou dois modelos de conduta e de outros tantos fez uma salada que a nutria perfeitamente: na medida exata do sobreviver. Quando descobriu que sua arte – sua dança, sua corporeidade – tornara-se marcha (de progresso), já era tarde para voltar, para procurar novos bailes, novos salões. Lamentou um pouco a perda do lastro com o passado, mas nada que – em sua versão marmórea – resultasse em lágrimas ou lamúrias. A inflexibilidade tocara-lhe os ossos. Agora era olhar para frente e seguir o ordinário.

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É TUDO VERDADE



Riso contido, negaceava. Verdade nunca fora seu forte. E, afinal, que graça têm os fatos? Graça tinha ela, nos vestidinhos floridos, nas calças brancas, nos tecidos leves. Eu disse isso.Ela, riso solto e alado, fez alegria. Chamou pra perto, apertou os lábios contra os meus e danou a falar sacanagem assim. Eu gostava. Estávamos ali, eu e ela, éramos nós: para quê verdade maior que essa?

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FEITO COISA



Um dia fui objeto do teu amor, recebi os mimos que me cabiam: a recompensa dos amáveis. Mas agora – agora o quadro é bem outro: não passo do sujeito que reorganiza as lembranças em busca de um sentido insuspeito. Saudades – saudades lancinantes do tempo em que era objeto. Tudo que eu precisava, naquele tempo, era estar ali, ao alcance, disponível, aberto, luminoso, radiante e parabólico, sempre pronto a captar a freqüência do teu desejo. Hoje sou apenas mais um sujeito – mais um sujeito que, depois de ti, segue às apalpadelas, experimentando a hostilidade do mundo em cada gesto, confrontando sorrisos estranhos e tentando decifrar enigmas silentes em faces jamais vistas: faces ocultas na mesma moeda que encerrava nossa história.

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