sexta-feira, junho 03, 2005

SOBRE LINHAS E FUGAS*



De uns tempos pra cá, sob influência deleuziana, tenho falado bastante em “linhas de fugas” e “devires”. Faço isso nos contextos mais variados. Aproprio-me, roubo, capturo o vocabulário desse recente interlocutor para recriar sentidos assimilados (ou mal assimilados) em outros tempos. É dessa forma que traço “linhas de fuga” e experimento novos “devires”. Outrora foram o devir-Borges, o devir-Maffesoli, o devir-jornalista. Hoje, é um devir-quase-deleuze, um devir-curioso, um devir aprendiz.

Fujo. Fujo dos “muros brancos”, mas não por covardia. “Fugir”, diz Deleuze, “não é viajar, tampouco se mover”, “fugas podem ocorrer no mesmo lugar, em viagem imóvel”. Há muito que busca a ruptura. “Cheguei à conclusão que aqueles que haviam sobrevivido tinham realizado uma verdadeira ruptura. Ruptura quer dizer muito e não tem nada a ver com ruptura de caria em que, geralmente, se está fadado a encontrar outra cadeia ou a retomar a antiga. A célebre Evasão é uma excursão em uma armadilha, mesmo se a armadilha compreende os mares do Sul, que são feitos apenas para aqueles que querem navegar neles ou pintar. Uma verdadeira ruptura é algo a que não se pode voltar, que é irremissível porque faz com que o passado deixe de existir” (Fitzgerald).

Mas traçar uma linha de fuga é tarefa complexa. “Mesmo quando se distingue a fuga e a viagem, a fuga continua a ser uma operação ambígua. O que nos diz que, sobre uma linha de fuga, não iremos reecontrar tudo aquilo de que fugimos?” Não há garantias, certezas: não há como fazer previsões. É preciso viver vivendo, andar andando, fugir fugindo: só se descobre pra onde vai uma linha à medida que a vamos traçando. Linhas são caminhos e de caminhos fala Mário Quintana...

“Era um caminho que de tão velho , minha filha,
já nem sabia mais onde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos!”**

E são os traços que fazem as linhas. “A linha de fuga é uma desterritorialização. “Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar”. “Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobre mundos através de uma fuga quebrada”.

Para fugir é preciso estar alerta, a desatenção é um imperdoável, “é justamente isso que se pode aprender na linha de fuga, ao mesmo tempo em que é traçada”, é justamente isso que se pode aprender no caminho, ao mesmo tempo em que é percorrido: “os perigos que se corre, a paciência e as precauções que é preciso ter, as retificações que é preciso fazer todo tempo para livrá-la das areias e dos buracos negros. Não se pode prever”. You must to play jazz, improvisar na medida certa para não estragar a melodia. “Nunca é o início e o fim que são interessantes; o início e o fim são pontos. O interessante é o meio”. “Está-se no meio de uma linha, e a situação é desconfortável”, no entanto, já sabia Riobaldo: “o real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”***.

“A fuga é uma espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos eixos (como ‘pirar’, etc). Há algo de demoníaco, ou de demônico, em uma linha de fuga. Os demônios distinguem-se dos deuses, porque os deuses têm atributos, propriedades e funções fixas, territórios e códigos: eles têm a ver com eixos, com limites e com cadastros. É próprio do demônio saltar os intervalos, e de um intervalo a outro”.

Também no amor é preciso fazer vazar, valorizar mais o caminhar e não parar pra se perguntar pra onde se está indo. “Torne-se capaz de amar sem lembrança, sem fantasia, e sem interpretação, sem fazer o balanço. Que haja apenas fluxos, que ora secam, ora congelam ou transbordam, ora se conjugam ou se afastam”. “Sobre as linhas de fuga, só pode haver uma coisa, a experimentação-vida. Nunca se sabe de antemão, pois já não se tem nem futuro nem passado”.

“O grande erro, o único erro, seria acreditar que uma linha de fuga consiste em fugir da vida; a fuga para o imaginário ou para a arte. Fugir, porém, ao contrário, é produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma”.

* Todos os trechos entre aspas, com exceção daqueles em que o autor é citado (caso de Quintana e Rosa) foram extraídos do livro “Diálogos”, de Deleuze e Parnet.
** Mário Quintana, poema “O último viandante”, em “A cor do invisível”.
*** Guimarães Rosa, “Grande Sertão Veredas”.

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