quinta-feira, maio 05, 2005

A HANSENÍASE NÃO ACABOU COM A LEPRA




Ninguém – absolutamente ninguém – que se interesse minimamente pelo estudo da linguagem seria capaz de negar que toda língua traz em si altas doses de preconceito. São expressões que refletem processos históricos, como o imperialismo, o colonialismo, a belicosidade; expressões que refletem posturas – hoje apropriadamente questionáveis, outrora compreensíveis – incompatíveis com uma sociedade que se diz multicultural e civilizada (embora civilização, é bem verdade, não signifique, necessariamente, uma coisa boa). Sexismo, racismo, homofobia, xenofobia: tudo vaza na linguagem.

Saber que a língua assimila as mazelas da humanidade e diz do que somos – mesmo quando não quer – é um sinal de avanço(1). Depois de séculos de ignorância – de sujeição ao fascismo da língua, como diria Barthes – conseguimos lançar sobre ela um olhar crítico, conseguimos brigar, lutar com a linguagem, para – quem sabe? – tirar dela seu melhor.

Bom, saber que a língua é quase que naturalmente preconceituosa é algo positivo. É bom ter a consciência de que quando escrevo “positivo” ou “bom”, por exemplo, remeto a uma concepção de bem e mal, aos dualismos. Mas mais do que isso, é interessante saber que nem todos estão preparados para combater a linguagem. Nem todos dispõem dos armamentos necessários. Nem todos são capazes de dominá-la, subvertendo a ordem natural das coisas.

Falo de tudo isso para dizer que de certa cartilha preparada pelo governo com uma lista das expressões “politicamente incorretas”. A famigerada cartilha, criticada acertadamente por vários setores da distinta sociedade brasileira(2), parte de uma percepção interessante acerca da linguagem – de que ela carrega preconceitos – para levar ao grau máximo um outro aspecto da língua para o qual essa mesma capacidade perceptiva deveria atentar: o fascismo da linguagem. Quando o governo tenta proibir – ou, no mínimo, reprimir – certas expressões, ele não faz nada mais do que cobrir o sol com a peneira, obrigando-nos a “dizer de outra maneira”. Um dos meios de se subverter a linguagem é inventar linguagem, reinventar a própria língua. Certas expressões, por mais pejorativas que sejam, dizem também de uma capacidade que os seres falantes – e escreventes – têm: a de criar novas saídas, novas rachaduras por meio das quais é possível escapar ao que da linguagem é imposição.

Não duvido das boas intenções dos organizadores da Cartilha. Um fato que muitos têm esquecido na hora de tripudiar da dita cuja é que ela é direcionada a policiais, professores e – opa! – jornalistas. Concordo que esses profissionais devem estar mais atentos para os usos que fazem da linguagem, pois exercem um papel importante na sociedade, são “formadores de opinião”, ajudam a disseminar conceitos e pontos de vista numa escala muito maior e mais complexa do que aquela representada pelo cidadão comum. Esse atenuante, contudo, não impede que ampliemos o debate. Cabe apenas evitar superficialidades, pois este é um tema delicado demais para ser tratado levianamente. A falta de tato e a precipitação de muitos setores do governo têm deixado brechas pra que esse tipo de mal estar, como o gerado pela cartilha, se instale. Essas tais cartilhas sempre assumem um caráter doutrinário e denunciam a verticalidade excessiva do estado. Essa discussão acerca dos preconceitos da lingua precisa ser matizada. Nela, nem tudo é "preto no branco".

Vetar expressões como “negro”, “banquelo”, “viado”, “palhaço” e “bicha” não resolve problema algum. É o mesmo que chamar lepra de hanseníase. A lepra não deixou de existir só porque mudou de nome: ainda é uma doença terrível, ainda mata. Da mesma forma, o preconceito continuará presente, mesmo que negros virem afro-brasileiros e os “viados”, homossexuais. As palavras adequadas não passarão de eufemismos, dependendo de quem as usa e de para quê as usa. Há tantas maneiras de agredir verbalmente sem usar verbos agressivos! Ironia, sarcasmo, insinuação: tudo isso estará à disposição dos preconceituosos que, repito, continuarão existindo, independente do vocabulário.

É importante que nos libertemos do fascismo da linguagem. E limitar ainda mais o léxico disponível não é a melhor maneira de se fazer isso. Assim como a substituir vocábulos não muda comportamentos historicamente construídos.

(1) Quando uso a palavra avanço neste contexto, remeto a uma idéia de progresso como algo desejável.

(2) A palavra distinta, apresenta aqui um alto grau de ironia, uma das armas da qual dispomos para lutar contra o fascismo lingüístico.

|