HOJE?
Hoje pensei em falar de política, pensei em falar de amores e rimas possíveis (quis desejar o impossível). Pensei m falar das pernas, das coxas, do decote: pensei em ser despudorado. Pensei em falar de pessoas, de domingos, de atropelamentos. Pensei em repensar a vida.
Cansei, resolvi parar de pensar – e continuei pensando...
... pensei em fazer cartografias, um desenho de mim pra colocar sobre a mesa e traçar planos de guerra, só para – um dia, quem sabe? – “ser coroado rei de mim”, descobrir de onde vem e para onde vai a calma (já que a alma, perdida e inquieta, explode em todas as direções).
Hoje pensei em parágrafos, em redemunhos, em horrores. Hoje vi o tempo passar ao meu lado, enquanto cuidava da vida, da lida, do não-lido. Hoje me descobri repetitivo, formando círculos concêntricos. Hoje, resolvi deixar tudo para amanhã.
Amanhã, sim. Amanhã falarei de política, pensarei em amores e rimas possíveis, subverterei o impossível e beberei direto da vida – as mãos em conchas...
Sim, amanhã. Hoje, não...
Hoje estou cansado. Cansado de buscar originalidades, explicações ou sentidos. Cansado dos outros, do inferno, do existencialismo, da farsa nossa de cada dia. Hoje, decepcionado, sou todo cara-de-pau: já não cabem receios ou hesitações. Sou capaz de falar em decepções inexistentes, flertar com o sentimentalismo mais ralo só pra buscar a forma imperfeita (sem jamais encontrar).
Hoje quero lamentar os desencontros só até o próximo plot (quero hollywood: happy end, uma questão de tempo: a felicidade a duas horas de mim).
Hoje quero desentendimento, rusga, cisma. Hoje estou cá gota, quero grito, quero briga!
Amanhã – amanhã quero fazer as pazes, hastear a bandeira branca, repousar em berço esplêndido.
Por hoje – por hoje chega...
... fiquem com Fernando, pessoas...
ADIAMENTO
“Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de Domingo divertia-se toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de Domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é o que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanha serei finalmente o que hoje não posso nunca
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã..
O porvir...
Sim, o porvir...”
Fernando Pessoa
Antes de ir, um pedido: evitem aconselhamentos, racionalizações ou achismos. Evitem filosofias baratas, bulas de remédio, imediatismos. Os texto – como a vida – nem sempre precisa fazer sentido. Pensem em “fluxos que se conjugam”, pensem em encontros, em (con)fusões. Não procurem saídas, respostas ou explicações. Além do texto, tudo fica nebuloso, incerto, vívido demais. Hoje não busco a vivacidade, mas só a materialidade do texto em si(mesmado), feito (em) bloco de concreto.
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