CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA HÁ MUITO TEMPO...
Morreu anteontem o mendigo Chico Tabaculê, que há anos era parte do folclore de Guarapari. Tabaculê foi morto com uma paulada na nuca. Algumas pessoas sondam a possibilidade de vingança, pois há pouco tempo Chico agredira um cego que esbarrara nele por acaso.
No enterro, anunciado por em carros de som, figuras carimbadas, como a do compositor de “Meu pequeno Coroado” e “Peroá”, o maratimba Lingüinha – figura tão errante quanto Tabeculê nas ruas da cidade.
Reza a lenda, que Tabaculê não gostava de tomar banho. Vez ou outra, alguém lhe dava um banho meio que à força. Quando isso acontecia, ele gritava, dizia que morreria, que o médico o proibira de tomar banho. Era mentira, mas parece que ele levava a sério. O mau cheiro – junto com os gritos – costumavam anunciar sua chegada, informar, como um localizador arcaico, em que ponto da cidade ele se encontrava. Desta vez, os gritos que tantas vezes salvaram Tabaculê banho, não o salvaram da morte.
O apelido Tabaculê, ninguém sabe ao certo de onde vem. O fato é que era esta alcunha que fazia Tabaculê xingar palavrões sem conta -- na linha do “seusfeladaputa” -- e emitir grunhidos, muitas vezes assustadores, que faziam eco nos prédios do centro. Quando ele passava, logo alguém mexia: “Tabaculê! Tabaculê!”. Era, geralmente, um coro, que Tabaculê revidava, segundo alguns com prazer.
Esse é, por sinal, um detalhe interessante na história oral que foi sendo contada em torno do mito de Tabaculê: segundo alguns, Chico gostava que o chamassem de Tabaculê. Ser provocado e revidar com palavrões e pedradas seria, teoricamente, sua forma de continuar existindo em sua inexistência. Isso não o livrava de ser mendigo, mas o tirava da invisibilidade. Assim como as composições de Lingüinha ou o carrinho de Pedro Doido os tornam visíveis, os gritos de Tabaculê faziam com Chico.
Tem gente que diz que ele tinha família. Outros, que era funcionário da Escelsa e enlouquecera após cair de um poste e bater a cabeça (ou depois de levar um choque?). Outros afirmam que era um homem lúcido, com o qual se podia conversar normalmente depois que se chegava perto. Os seus, diz-se por aí, estão em algum lugar no interior do estado e -- testemunhas afirmam -- seu irmão compareceu ao enterro.
E tem gente que nem sabe o que diz.
Se Tabaculê queria ser visto, conseguiu. Abriu mão da vida – a vida toda – para entrar na história de Guarapari. O destino tragicômico faz pensar sobre como nos tornamos insensíveis para certas coisas. Como temos facilidade para coisificar o outro, tratá-lo como aberração: o “freak show” que nos faz acreditar que somos melhores. Tabaculê deixou de ser Chico, pra ser Tabaculê. É uma maneira enviesada de existir, de estar no mundo. Uma modo de ser não-sendo, de ser descendo ao fundo do poço. Um modo se fazer ver o quanto nossa indiferença pode ser letal.
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