sexta-feira, outubro 08, 2004

A SOLIDÃO DAS “TORRES DE MARFIM”



Está rolando uma discussão sobre o distanciamento entre o campo acadêmico e a realidade do “mundo vivido” na Praça do Zé, o outro blogue que participo. A discussão é pertinente para o Psicotópicos e para o Brasil. Rediscutir a função social da Universidade e o papel da Academia/Ciência no mundo contemporâneo é algo de fundamental importância para qualquer cidadão que se interesse pela construção de um mundo melhor.

O debate, lá na praça, surgiu a partir de um “post” do Primo Zé, que colocou em debate o que costumo chamar de “a questão das torres de marfim”. Grosso modo, criticava-se a “masturbação intelectual” da academia brasileira, as discussões infrutíferas, as contendas filosóficas que nunca saem do lugar, a circularidade do debate, seu caráter auto-referencial, em suma, o distanciamento entre o campo acadêmico – espaço da “ciência” – e o “mundo vivido”, espaço do cotidiano, das relações sociais, do tête-à-tête.

Acredito que o nível de abstração em que certos debates são elaborados no âmbito da academia é algo que incomoda muita gente. Muitas vezes, torna-se inevitável perguntar: “afinal, o que isso tem a ver com a minha vida?”

Aqui, cabe esmiuçar um pouco melhor a questão.

Muitas vezes, os debates travados por mestres e doutores têm a ver -- e muito -- com a vida das pessoas comuns, como a do seu Zé e da dona Maria. Contudo, a complexidade da discussão e, sobretudo, a linguagem hermética com a qual os debatedores articulam seus discursos inutiliza a discussão. É simples: se o seu Zé e a dona Maria não entenderem o que o Doutor Jean Pierre Malinowsky discute com o Mestre Diógenes Pedrosa, o conteúdo desse debate jamais será assimilado por eles e, logo, não fará diferença!

O fato do de deixar de fazer diferença, de perder importância, justifica o discurso fascista de que a filosofia não serve para nada. Para um regime totalitário, tanto melhor que as pessoas sejam simplistas ao extremo e que, de preferência, disponham de um léxico reduzido, formulem frases curtas e de fácil assimilação. Linguagem e poder, historicamente, caminham lado a lado.

Uma coisa que os fascistas pretendem ignorar é que, na maioria das vezes, o pensamento filosófico e humanista não oferece resultados imediatos. Contudo, progressos filosóficos, quando assimilados pela maioria, são capazes de fazer algo fundamental para a civilização: mudar mentalidades. Não fossem os avanços nesse sentido, ainda estaríamos na Idade Média, ouvindo missas em latim e dizendo vivas ao Rei.

Pra muita gente, hoje em dia, a idéia de voltar à Idade Média poderia ser atraente. Para mim, não. Sabe-se que o saber, o conhecimento, a ciência pode estar a serviço de estratégias de dominação. Contudo, é ainda com saber e conhecimento que se pode buscar a liberdade.

Mas voltemos à questão proposta mais acima, sobre o conhecimento encastelado: “afinal, o que isso tem a ver com a minha vida?”

Acredito que o discurso fascista e irracionalista parte dessa pergunta para questionar a validade do pensamento filosófico, num primeiro momento, e o valor da liberdade, posteriormente. Se assim é, podemos dizer que a academia encontra-se diante de um momento crucial em sua histórica.

Simplificar as discussões e partir para iniciativas “práticas”, nas quais o que conta são os resultados imediatos, seria render-se de vez ao tecnicismo capitalista e/ou à barbárie fascista. Se a academia ceder nesse ponto, vai corroborar a tese neoliberal de que Universidades devem virar Escolas Técnicas, formando apenas “mão-de-obra qualificada” para servir cegamente ao mercado, sem questionar. Optar por esse caminho seria aceitar a transformação de um dos poucos espaços de reflexão do mundo contemporâneo em mais espaço a serviço do “establishment”.

Por outro lado, insistir no encastelamento, também justificaria esse discurso, pois deixaria a academia em maus lençóis diante da opinião pública, diante da grande maioria da população. Usando um discurso bem capitalista: ninguém gostaria de financiar os debates infrutíferos dos doutores. Essa situação intensificaria um processo já em andamento, que é o da revolta contra a lentidão das medidas humanistas. A ascensão do partido neonazista na Alemanha e da extrema direita na França, com Le Pen, são um sinal de que as pessoas estão propensas aos discursos enérgicos, que jogam séculos de pensamento humanístico no lixo, em nome de alguma mudança concreta, por mais efêmera que ela seja.

Acredito que o caminho para se resolver esse impasse não é a transformação na universidade em escola técnica, nem a insistência no encastelamento. O que precisamos -- é isso que tenho tentado deixar claro em meus comentários na Praça do Zé – é pensar em formas de aproximar a universidade da comunidade. È preciso traduzir – e não simplificar – para as pessoas os debates travados no campo acadêmico. É preciso encontrar formas de vulgarizar conceitos sem deturpá-los. A academia precisa aprender a compreender a linguagem da maioria, para saber quais são suas verdadeiras demandas, o que os aflige, o que os aprisiona para, de posse disso, pensar em soluções para os grandes e pequenos problemas da humanidade. Mas não se deve pensar essas soluções isoladamente. É preciso estar junto do povo, da maioria. É preciso parar de ver as pessoas como objetos, como números, como estatísticas, para compreendê-los enquanto sujeitos, formados por um emaranhado complexo de discursos e estruturas simbólicas diversas.

Ao mesmo tempo, a academia precisa olhar criticamente para si mesma. É preciso que os acadêmicos acordem para o fato de que seu trabalho precisa significar alguma coisa para a humanidade, senão nunca fará sentido, será vazio.

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Nessa interface entre o campo acadêmico e o “mundo vivido” é que a comunicação social exerce um papel fundamental. Ela -- se não é -- deveria ser o mediador entre os discursos. Fazer essa mediação, contudo, exige comprometimento. É preciso pensar o jornalismo científico a sério, ele não pode estar sujeito à correria das grandes redações. Ciência e pesquisa não são modas. Não se descarta teorias ao sabor da estação.

Outro item que considero de fundamental importância é a utilização do vídeo, da televisão e dos computadores no ensino. Qualquer pessoa que entenda minimamente de informática sabe que é muito mais fácil entender um princípio quântico, por exemplo, quando se recorre a uma simulação gráfica do que quando se utiliza a velha técnica do “cuspe e giz” para fazer isso. Reconhecer a utilidade das novas tecnologias na educação é fundamental para tornar o discurso científico mais compreensível sem simplificá-lo demais ao ponto de distorcê-lo.

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Sei que parece ousadia, mas o projeto que estamos tentando levar à frente aqui em Guarapari, tem uma filosofia semelhante a esta que ora esboçamos. Estamos tentando unir pesquisa acadêmica – de Pierce e Wittgenstein, de Foucault e Deleuze – a projetos de midiatização da educação e promoção de eventos culturais, tudo isso fora do dogmatismo e da burocracia das Instituições de ensino convencionais.

Aos poucos, irei relatando aqui no blogue o andamento da coisa por estes lados. Por hoje, chega: já escrevi demais.

(Visite a Praça Zé, o outro e participe da discussão sobre este tema).

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