sexta-feira, setembro 10, 2004

FACES DO MAL


Há pouco tempo, assisti ao documentário de Leni Riefentahl, a “cineasta de Hitler”, “O Triunfo da Vontade”. O que mais me impressionou no filme (além do domínio técnico da cineasta), foi a enorme semelhança entre o discurso de Hitler e o discurso dos políticos contemporâneos. Lula, Serra, Fernando Henrique, Collor, todo mundo, em algum momento, afina seu discurso com o do Fürer, seja para prometer uma sociedade mais igualitária, seja para exaltar a nação.

A diferença básica é que, no caso de Hitler, o discurso funcionava melhor, tinha mais apelo. Talvez porque fosse a parte visível de uma planta de raízes profundamente fincadas na demência. Talvez porque as sementes lançadas pelo alemão encontrassem solo mais fértil.


O que me intrigou no documentário foi justamente a absurda vocação do nazismo para agregar pessoas em torno da causa. E, sobretudo, a ânsia dos alemães por um líder, por uma figura que lhes dissesse o que fazer e para onde ir, alguém que parecesse suficientemente sólido para apoiar a nação enfraquecida. Era uma espécie de necessidade de dar um sentido às próprias vidas. As multidões mobilizadas por Hitler eram uma massa de sobrepujava o humano. Todo vestígio de pensamento livre desaparecia ali, dissipava-se. Bastava um comando do Fürer para ativar o exército de zumbis. A imagem é batida, mas as expressões daqueles rostos, captadas por Leni, não me deixavam ver diferente. Lobotomia, programação mental, lavagem cerebral, hipnose, chamem como quiserem. O fato é que tamanha unidade é assustadora.


Hoje, um discurso que não é político, mas religioso está conseguindo aglutinar pessoas tanto quanto o nazismo. A diferença é que agora não há UMA nação nem UM líder: há uma causa transcendente – a islâmica – e pequenos Hitler´s espalhados pelo mundo. Bomba atômica, neste caso, já não seria tão eficiente. Um “dia D” não seria tão determinante.

A guerra contra o terror é pontual. Avança de forma lenta. Pára, retrocede, recomeça, dissipa-se aqui para formar-se novamente acolá. Quanto Putin avisa que vai atacar bases terroristas em qualquer canto do mundo, sem aviso prévio, ele corre um enorme risco (o de causar conflitos diplomáticos e colocar fermento no conflito) para poder entrar no jogo deles. Jogo deles, sim, porque o fanatismo-religioso não tem pátria. É desterritorializado. Como “Ala”, está em todos os lugares e em lugar nenhum. E, no fundo, como ex-membro da KGB, Putin não ignora nada disso. O discurso, mais uma vez, serve para ocultar interesses escusos, que passam pela vontade de perpetuar-se no poder.


Mas por mais que seja reconfortante pensar que todo mal do mundo se resume ao terrorismo e aos líderes estúpidos que dizem querer combatê-lo, a realidade não se esgota aí. O mal assume varias formas. Está em vários lugares. A violência urbana é um exemplo.

Em matéria publicada no site de “O Globo”, li que a prefeitura de Diadema, em São Paulo, reduziu os índices de criminalidade instalando câmeras nos bairros mais violentos. É o medo fazendo as pessoas abrirem mão da privacidade. É o “Big Brother” atualizado. A tecnologia a serviço da repressão, da “vigilância” e da “punição”. Os bárbaros precisam ser vigiados de perto, observados em todos os seus movimentos. A liberdade, dia após dia, torna-se cada vez menos desejada pelas pessoas. Seja a liberdade de pensar, como no caso dos fanáticos religiosos, seja a de andar distraidamente pelas ruas, no caso dos brasileiros e tantos outros cidadãos do mundo sujeitos às câmeras de vigilância.

Nos descaminhos da modernidade, parece que só a técnica vingou. Dela se servem Islâmicos e Yankees, traficantes e policiais. Além dela, torna-se cada vez mais difícil encontrar humanidade. Os nichos nos quais ela se esconde, parecem ter o silêncio como filosofia de vida, mais ou menos como o personagem de Raduán Nassar que diz “já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio".

Enquanto isso, o barulho do mundo é cada vez mais forte, cada vez mais próximo. É como se os tiros, os mísseis e os homens-bomba caminhassem devagarinho em nossa direção.

“O Grito” já nos foi roubado. Haverá um momento em que não haverá mais tempo para quebrar o silêncio. E, se esperarmos muito, quebrar o silêncio já não será suficiente. Estaremos no caminho dos acontecimentos: seremos atropelados.


Longe dos carros-bomba, um outro tipo de terrorismo, silencioso e corrosivo, desenvolve-se lentamente, debaixo de nossos narizes saudáveis. É o terrorismo neoliberal, dos capitais flutuantes, dos FMI´s, da “mão invisível do mercado”, cometendo atrocidades sem que ninguém se de conta. Matando países, famílias, juventudes. É o terrorismo do consumo desenfreado, da felicidade procurada no que é coisa, no que se compra.

Os valores são apenas financeiros. O humano é empurrado para segundo plano. O indivíduo, na busca da diferença, torna-se homogêneo, mas não consegue perceber-se como igual. O umbigo torna-se o centro do mundo. O conceito de humanidade vira apenas uma abstração -- nós também. Somos números - o máximo da abstração! - vítimas de uma manipulação fria, incapaz de perceber nuances. Já não precisamos tanto de ditadores carismáticos para os dizerem o que fazer, pelo que lutar, o que desejar, o que conquistar para sermos felizes: a publicidade, o Gobbels do mercado, faz isso melhor do que ninguém e nem precisa fazer tanto barulho. Nesse novo império, não precisa ser ariano para ser respeitado, nem judeu para ser perseguido. São muitos os fatores que contribuem para incluir ou excluir alguém do grupo. A dominação (e a ideologia) sofisticou-se. O simplismo nazista foi abandonado. Olhando assim, não fica difícil dizer que Hitler era mais vulverável do que esse mal sem rosto que nos oprime hoje em dia.

É triste. Um bom fim de semana para todos.

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