segunda-feira, setembro 06, 2004

BAD TRIP: UM PÉRIPLO PELA PROGRAMAÇÃO DOMINICAL DA REDE GLOBO


“Domingão do Faustão”. No palco, Felipe Dylon e Dado Dolabela dividem os holofotes globais. Diante da TV, quatro possibilidades se me apresentam: posso trocar de canal, procurar um documentário qualquer na TV escola ou uma entrevista na TVE-Brasil, domingo a programação costuma ser interessante em ambos os canais; posso desligar a TV e retomar a leitura do artigo de Sartre, “O existencialismo é um humanismo”, que começara na noite passada; posso continuar diante da TV e curtir o que de pior ela pode oferecer (em dose dupla, sem gelo); ou posso pular da janela, sair correndo alucinadamente, sem rumo, à Forrest Gump, pra esquecer de tudo-tudo, porque um dueto de Felipe Dylon e Dado Dolabela é pode ser um prenúncio do fim dos tempos, do apocalipse, do(a) (falta de) juízo final.

Numa fração de segundo, entro num solilóquio silencioso e convenço-me a continuar diante da TV. Argumento, de mim para comigo, que tal experiência pode ser útil, para fins científicos. Talvez fosse possível entender os mecanismos da indústria cultural, especular o comportamento das massas frente às elaboradíssimas estratégias midiáticas contemporâneas, ou simplesmente chocar-me e reclamar do estado deplorável em que se encontra a televisão brasileira.

A argumentação é boa. Suficiente para ocultar de mim mesmo o fato de que também eu tenho um quê de massa e acabo de ser capturado pelas mefistofélicas malhas do “Domingão do Faustão”. Entrego-me aos baixos instintos. Deixo-me levar pelos obscuros caminhos do domingo na TV.


Minha viagem começa por Felipe Dylon, que conversa com Faustão. Cinicamente, Fausto faz piadas (sem graça, mas temperadas de um sarcasmo sutil que transparece em sua voz) que o moleque, aparentemente, não compreende. Politicamente correto – claramente fabricado para o pseudo-sucesso da música pasteurizada brasileira –, Dylon parece incapaz de reagir ao inesperado, ao que está fora do controle, do roteiro, do script. Diante das perguntas as mais simples, recorre sempre aos lugares comuns para responder. Agradece a tietagem, diz estar feliz com o sucesso e, invariavelmente, sorri. O astro adolescente parece oco. É como se por trás da figura pública, cuidadosamente forjadas pelas modernas técnicas de marketing, não houvesse uma vida digna de qualquer espécie de culto ou idolatria. O Dylon que fala ao Faustão, parece pertencer à realidade da não-vida. Ele dupla, ele sorri, ele agradece. Seu cabelo, imóvel. Seus dentes, simétricos e brancos. Sua música, vazia e lobotômica.

Por graça dos deuses televisivos – ou do ponto eletrônico –, Fausto fala mais que o garoto. Assustadoramente, a personalidade do apresentador cresce diante de Dylon. É como se o ridículo da situação o redimisse. Como se, por dentro, mesmo ele, o Faustão, lamentasse o que, com sua ajuda, acontecia. É tudo muito “fake”, artificial e profundamente triste.


Dado Dolabella participa de um quadro do Domingão em que pessoas comuns, escolhidas mais ou menos aleatoreamente nas ruas do país, perguntam ao “olimpiano” (para usar uma expressão de Edgar Morin) o que lhes vêm à cabeça.

Antes de começarem as perguntas do público, no entanto, Dado utiliza o microfone como bem entende. Ao seu dispor, o maior veículo de comunicação do país. Uma audiência de milhões de expectadores. Dado deita, rola e aproveita – mal. Os minutos se sucedem e a overdose de filosofia barata, de clichês e de alienação completa é inevitável. Dado vomita atrocidades. Atropela a língua portuguesa com frases iniciadas com “as olimpíadas serviu para” gritadas para a câmera, de forma panfletária. Ele acusa a sociedade de hipócrita, menospreza o desempenho brasileiro nos jogos olímpicos, fala do capitalismo ao mesmo tempo em que agradece a vida boa que a mãe lhe proporcionou. Mãe que, pouco depois, apareceria, num dos tradicionais VTs, falando sobre o lado humano de Dado, sobre os percalços da vida do seu menininho. Com os olhos úmidos, Pepita Rodrigues afirmaria temer pela “cabecinha” (a palavra, muito bem colocada, foi essa mesma) de seu filhinho, com todo esse assédio da mídia, afinal, ele é tão jovem, com seus 24 anos.

Dando prosseguimento ao espetáculo bizarro iniciado por Felipe Dylon, Dado parece incapaz de expressar qualquer coisa autêntica. É como se, o tempo todo, vivesse um personagem, como se cada olhar para a câmera, cada sorriso, cada frase fosse uma tentativa desesperada de sustentar uma certa imagem. Imagem que lhe garante um espaço. Um espaço a ser defendido, pois a “Malhação” e as passarelas produzem em série substitutos à altura de Dado, ainda que nem todos tenham origens tão nobres quanto as dele. Dado supre perfeitamente uma das tantas demandas da indústria cultural. É um “olimpiano” produtivo, sempre capaz de render uma capa de Caras ou Contigo por semana. A imagem é perfeita.

Mas, para continuar surtindo efeito, para ser sustentada, essa imagem que o mantém como centro das atenções precisa ser por ele repudiada. Faz parte do roteiro. Seu discurso deve, invariavelmente, contradizer o que dizem seus atos. É na tentativa de “defender-se” da fama de “galinha”, de “pegador”, de “mulherengo” e de “convencido”que Dado gasta boa parte de seu tempo no programa. As perguntas/provocações do público orbitam o universo da vida amorosa (ou deveríamos dizer sexual?) de Dado. Nenhuma questão sobre o ator ou sobre o cantor Dado Dolabela. O objeto de interesse é o personagem Dado. Aquele que se confunde muitas vezes (fato que ele, é claro, nega) com o Plínio, o filho “plaiboizinho” da do Carmo em “Senhora do Destino”.

É como se as pessoas intuíssem que o ex-namorado da Vanessa Camargo não vai muito além disso. O cantor e o ator são apenas mais duas facetas do personagem Dado, complementos que ajudam na caracterização.

Interrogado sobre o porquê do fim do relacionamento com Vanessa Camargo, Dado arranha-se ao tentar sair pela tangente:

“Porque não deu certo? Sei lá! Porque que o céu é azul, porque que o Bush ta fazendo guerra?”

Pérolas de sabedoria vão sendo espalhadas ao longo do programa. “Não sou celebridade”, ele diz. “Celebridade está no céu, o próprio nome já diz: ce-le-bri-da-de”. Perfeito! A tirada genial poderia ser o ponto de partida para um livro de auto-ajuda desses que lideram a lista dos 10 mais vendidos da Veja por semanas a fio!

O público insiste. Martela na tecla do Dado Pegagor. Ele nega que seja assim. Alega uma vida pessoal oculta, um lado humano vilipendiado pelos jornalistas. Na oportunidade que tem para deixar vir à tona esse lado, ainda que de forma forçada, construída pelo espetáculo televisivo, Dado perde o bonde. A deixa viera da mãe que, emocionada, falara sobre as recentes perdas familiares sofridas pelo seu menininho. A câmera, em close no rosto do ator, prepara o terreno para as lágrimas – o clímax desse “arquivo confidencial” improvisado. Dado coça a têmpora esquerda, como se estivesse nervoso, levanta do dedo direito, como criança em sala de aula e, para frustração geral, pergunta: “Posso cantar mais uma música?”

Fausto sorri, concorda. Tudo parece ensaiado afinal, o jogo da seleção está prestes a começar. Dado pula palco afora e dubla seu maior sucesso, confirmando a imagem que o público tem dele e que, há pouco, ele se esforçava para desconstruir. O refrão da música é direto: “Vem ni nim que eu to facim facim”.

Pausa. Brasil entra em campo para enfrentar a Bolívia, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. Segundo tempo. Agora é a vez de Galvão...

(Continua)

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