quarta-feira, agosto 18, 2004

PSICO UTÓPICO



Acompanhar o noticiário político nas últimas semanas tem sido um passatempo – a palavra é essa mesma – interessante. Duas propostas do governo tem gerado discussão nos meios jornalístico e televisivo: a Ancinav e o Conselho Federal de Jornalismo.

As matérias acerca desses dois temas têm se caracterizado, até o momento, pelo maniqueísmo simplista dos prós e contras. Mais ou menos a lógica do Bush, no 11 de setembro, do tipo, quem não é comigo, é contra mim.

A imprensa, neste caso, tem se colocado no lugar de Bush. Com o poder que a mídia oferece, de (de)formar opiniões, os adversários da Ancinav e do CFJ tem aproveitado as falhas dos projetos para bater – e bater muito – no governo.

O curioso é que, nesse processo, o que fica mais evidente é a parcialidade e – por que não dizer? – passionalidade, a defesa apaixonada das próprias posições. Uma postura que, vale pontuar, distancia-se muito da teórica neutralidade jornalística, que tanto se apregoa.

Em momentos cruciais, como este, é que o caráter marcadamente editorialístico da imprensa brasileira vêm à tona. Já não importam tanto os argumentos, mas a capacidade de diminuir o outro por meio do discurso vazio, carregado de insinuações sórdidas, acusações infundadas, lugares comuns e idéias pré-concebidas, busca, de forma fascista, persuadir a qualquer custo, seja omitindo, distorcendo ou exagerando fatos.

Até o momento, de todo o conteúdo publicado sobre a Ansinav e o CFJ com o qual tive contato, foram poucos os textos que encaram o debate de forma séria, analisando os projetos com cuidado e debatendo, racionalmente, os pontos polêmicos.

Todo o barulho feito parece ter apenas uma finalidade: trazer de volta o silêncio. Interditar os discursos que não interessam à mídia – que é o canal pelo qual se veicula o discurso. O que se busca é a cessação do diálogo. O que se quer é impedir que a razão comunicativa dos envolvidos venha à tona.

A mim, parece que as acusações de fascista e autoritário que a mídia vem fazendo ao governo se aplicam, de forma irrestrita, a ela própria. Querendo ou não é no gargalo da mídia – no gatekeeper – que será decidido o que pode ou não ser dito. O que vai ou não para o espaço público. Dizer isso é chover no molhado, eu sei. Mas, em tempos de racionalidade ressequida, isso nunca é demais.

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Semana passada terminei o segundo capítulo de “Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade”, de Marshal Bernan. No capítulo onde trata do Fausto, de Goethe, como uma obra representativa da época moderna, o Berman cita a admiração do escritor alemão pelos escritos saint-simonianos do jornal parisiense Le Globe. O jornal, leitura favorita de Goethe em sua velhice, caracterizava-se por dar espaço a todas as utopias dos socialistas de então. Projetos mirabolantes que na época pareciam meros delírios e que, anos mais tarde, seriam realizados, como o Canal de Suez, que, conta Berman, era um dos sonhos de Goethe.

Lendo essas coisas, não pude deixar de pensar no jornalismo contemporâneo, e na miopia dos fatos. O jornalismo, hoje, não funciona enquanto crítica – porque não pode faze-la sempre, para não parecer parcial, perdendo assim a capa pseudo-científica com a qual se vestiu; e porque quando o faz, geralmente, o faz de forma equivocada, por meio de uma retória superficial e, como disse acima, muitas vezes vazia –; enquanto canteiro de idéias, à maneira do Le Globe, o jornalismo também não funciona mais pois, de uma forma que irritaria Clarisse Lispector, só lhe interessam os fatos.

O jornalismo, hoje, só faz barulho.

Faz barulho e destrói. Não cria, mas também não dá espaço para quem tenta faze-lo. O jornalismo político constitui-se de meia dúzia de figurinhas fáceis, que pontuam os noticiários, depondo sobre tudo e sobre todos. A maior parte dos parlamentares permanece incógnito e, pela imprensa, só é lembrando enquanto massa de manobra.

O jornalismo cultural enfrenta o mesmo problema. Se dependêssemos dos jornais para descobrir o que andam fazendo os escritores brasileiros, só conseguiríamos acompanhar a carreira de meia dúzia de nomes laureados, aos quais a mídia parece reduzir a literatura nacional.

O jornalismo econômico só faz acompanhar o mercado, de forma geralmente acrítica e criptográfica. O jornalismo científico se prende ao pitoresco, às novas galáxias, à “gerra dos clones”. As ciências humanas sobrevivem em nichos reduzidos, muitas vezes se confundindo, de forma promíscua, ao jornalismo cultural.

Se uma das característica do homem é a capacidade de compreender o passado e projetar-se no futuro, o jornalismo é uma profissão do inumano. Nele, só existe o que é imediato. Por trás dele, regendo-o, existem projetos de vida que interferem na vida dos seres ordinários, os outsiders, os sem voz.

Sem voz, sim, porque na sociedade de massas, o discurso que não passa pela mídia tem vida curta.

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A não ser que esses pequenos discursos consigam articular-se entre si, “correr por fora”, pegando atalhos e desvios. Aí, entramos na esfera do que Barbero chama de mediação. Para sair da lógica excludente da mídia é preciso, de certa forma, aceitar nossa marginalidade em relação aos meios e passar “dos meios às mediações”. É preciso criar contra-poderes; micropoderes que funcionem por viscosidade, crescendo, viroticamente, nos pontos fracos do sistema, minando-o aos poucos.

Precisamos trazer de volta a imprensa nanica, as reuniões em bares e botecos – a boemia! –, os pequenos grupos de oposição. Precisamos estabelecer diálogos, provocar diálogos, acabar com o silêncio barulhento que a mídia impõem. É preciso dar voz aos que a perderam.

É preciso abrir espaços.

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Se o sistema – a política, a mídia, o Estado, o capitalismo – está apodrecendo, é necessário que trabalhemos pelo aceleramento desse processo, trabalhando nos interstícios, corroendo-o a partir de dentro.

É essa a única revolução em que acredito.

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Os meios para se chegar a isso são vários. Vão desde a conversa informal, até as técnicas de mídia radical como a imprensa alternativa, a panfletagem, as rádios piratas e comunitárias, os movimentos culturais como o hip-hop e a grafitagem, os blogues, os fanzines, digitais ou não, as flash mobs, os instalações, a poesia, a cultura popular. Todas as estratégias de comunicação sob as quais o sistema perde o controle devem ser usadas a nosso favor. Devemos trabalhar com o micro, com aquilo que passa despercebido, quando nos damos conta, fez mudanças.

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