quarta-feira, setembro 22, 2004

"O DIA DEPOIS DE AMANHÃ"



Assisti neste final de semana ao filme “O dia depois de amanhã”, que – preconceituosamente – eu me recusara a assistir no cinema em outra época, por acreditar tratar-se de apenas mais um “filme de tragédia” que ressalta o heroísmo estadunidense, à maneira de “Independence Day” (que é do mesmo diretor, inclusive: Roland Emmerich). Por um lado, eu estava certo. O filme é, em sua maior parte, “mais do mesmo”, segue a velha receita: efeitos especiais, superficialidade na abordagem dos conflitos psicológicos, trilhas sonoras melosas e interpretações “meia boca”.

Em alguns aspectos, no entanto, o filme conseguiu surpreender-me ou, pelo menos, deixar-me curioso. A crítica à “cabeçadurice” dos governantes yankees está presente desde o começo, quando, por razões econômicas e políticas, eles se recusam a dar crédito ao cientista que prevê a tragédia climática que está por vir. O alerta contra o presenteísmo contemporâneo que sempre nos inclina a relegar questões ambientais a um segundo plano perigoso, também está gravado na película. Mas o que mais impressiona mesmo é a forma como o filme admite a culpa norte-americana com relação à situação dos países de terceiro mundo.

Falemos mais disso.

No filme, a catástrofe climática concentra-se no hemisfério norte. Ou seja, Europa e EUA entrariam numa era do gelo, seriam dizimados. Diante dessa perspectiva, a única alternativa que se apresenta para os norte-americanos, é fugir para o hemisfério sul. O lugar seguro mais próximo é – olha a ironia – o México!

Numa das cenas do filme, uma multidão de norte-americanos tenta entrar no México, mas é impedida pelo paredão de concreto que os EUA construiu para controlar a imigração. O filme é muito debochado nessas sutilezas. Como quando o presidente norte-americano, por exemplo, agradece a hospitalidade dos países sul-americanos, os quais impuseram, como condição para essa hospitalidade, que os EUA perdoassem suas dívidas. E o paradoxo: os EUA não existem mais! Não há território norte-americano, indústria, casa branca, nada! De que vale esse perdão das dívidas? É fetichismo do capital?

É um filme engraçadíssimo. Vale a pena ver.


Talvez Lula pudesse ter citado este filme para falar aos representantes da ONU sobre a necessidade de se falar mais a sério sobre assuntos do “segundo plano”. A bandeira levantada por Lula foi a da luta contra a fome. A de “O Dia depois de amanhã” foi a da defesa do meio-ambiente. Para ser levado a sério, o discurso de Lula precisaria ser legitimado por tragédias “concretas”, ou seja, aquelas que realmente interferem no dia-a-dia dos cidadãos do primeiro mundo. A fome na África não comove ninguém. Está longe. Assim como o terrorismo internacional não nos diz muito aos latino-americanos, a fome é inaudível para o “povo do norte”.

O hedonismo “pós-moderno” abre perspectivas interessantes para uma vida mais “intensa”. Mas sozinho, o hedonismo vira estupidez. Precisamos reaprender a pensar no futuro como se ele fosse o dia depois de amanhã.

Podemos chamar este discurso de piegas, antes é preciso saber se esse rótulo é fruto de análise ou se é estratégia para calar vozes incômodas.



Além das alfinetadas, o filme consegue colocar em discussão de forma muito mais eficiente que outros filmes de tragédia a questão ambiental. Em megaproduções como Twister, por exemplo, os fenômenos climáticos constituíam apenas um pano de fundo para uma historinha de amor banal e um espetáculo de efeitos especiais (banalíssimos). A natureza, em Twister, era o vilão da história. Em “O dia depois de amanhã” isso não acontece.

Se o filme “força a barra” recorrendo a um quase-apocalipse para atrair nossa atenção para as os perigos do impacto ambiental causado pela modernidade capitalista/neoliberal, não erra ao fazer isso. Boa parte dos diálogos do filme é construído com base em dados reais, disponíveis em qualquer universidade ou banco de dados do Greenpeace.

Por falar em Greenpeace, o site Planeta Porto Alegre (ligado do Fórum Social Mundial), publicou esta semana um relatório da Ong sobre os perigos do aquecimento global. Vale a pena conferir alguns trechos do texto:

“Cada vez mais cientistas indicam as mudanças climáticas como as culpadas pela instabilidade dos padrões climáticos. A concentração de CO2 (principal causador do efeito estufa) na camada mais baixa da atmosfera tem agora o nível mais alto em pelo menos 420.000 anos – ou 20 bilhões de anos, para alguns. O patamar é 34% superior ao nível em que se encontrava antes da Revolução Industrial. Um aumento que tem se acelerado desde 1950”.

“Em agosto, a Agência Européia do Meio Ambiente (EEA, na sigla em inglês), publicou estudo examinando os impactos das mudanças no clima europeu. O relatório aponta aumento no número de inundações entre 1975 e 2001 -- inundações extremas, que, sugere ainda o relatório, aumentam em possibilidade graças às mudanças climáticas”.


Em “O dia depois de amanhã”, o mundo é pego de surpresa por mudanças súbitas no clima do planeta. A forma brusca como tudo acontece, não permitiu que qualquer tipo de providência fosse tomada a tempo, já que antes não se tivera o devido cuidado com as questões ambientais. Nesse ponto, as informações do Greenpeace também corroboram para o argumento do filme:

“A cada ano, o planeta deixa-nos espantados com fenômenos meteorológicos como as monções na Ásia e os tornados que assolam as Américas. Mas, não importa quão devastadoras, suas aparições sazonais permitiam antes uma espécie de continuidade e previsibilidade. Agora, com o aumento da incidência de fenômenos climáticos extremos, a previsibilidade é algo do passado”.

Para quem pensa que os tornados e furacões que devastam Los Angeles no filme “liberdade poética” hollywoodiana, mais Greenpeace:

“Este ano, a temporada de tornados mostrou de maneira dramática os perigos de um mundo assolado por fenômenos climáticos cada vez mais intensas. Os furacões Bonnie, Charley, Frances e, agora, Ivan, aportaram no Caribe e na Flórida. Em março, foi a vez da costa brasileira ser atingida por um tornado – a primeiro já registrado no Atlântico Sul. Essas tempestades resultaram em bilhões de dólares em danos, tirando a vida de grande quantidade de pessoas”.

“Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática de 2001, a previsão é de que os furacões continuem a crescer em tamanho e estragos causados, com ventos mais fortes e chuva mais intensa – tudo por conta do aquecimento global. Fenômenos climáticos dramáticos existem desde muito antes dos homens começarem a aquecer o planeta. Mas não podemos permitir que se cruzem os braços ao mesmo tempo em que os furacões tornam-se cada vez mais poderosos”.

“Não há dúvidas de que a Terra está ficando mais quente. A questão que importa mesmo é se conseguiremos domar nosso insaciável apetite por combustíveis fósseis -- e frear o colapso”.


Pelo que se pode deduzir a partir dos conflitos no Oriente Médio e na Chechênia, parece que os “apetite por combustíveis fósseis” está longe de ser domado.



São por essas e por outras razões que me irrita profundamente a caricaturização que a mídia e a opinião pública fazem de Fernando Gabeira. No Brasil, ele continua sendo uma das poucas vozes capaz de se manifestar, sensatamente, a favor da questão ambiental. E o que se faz com ele? Associa-se sua imagem à de um hippie anacrônico, que só faz defender a liberação da maconha e a união homossexual. Anacrônica, tacanha (e hipócrita), penso eu, é a postura da sociedade brasileira.



Não posso deixar de pensar no Espírito Santo e na euforia em torno da exploração de petróleo no litoral do estado. Em Guarapari, um município que pouco ou nada se beneficiará com a hipotética vinda das empresas petrolíferas para o estado, ainda tem muito político usando a promessa do petróleo como plataforma de campanha. Quem olha a questão com um pouco mais de profundidade, sabe que a plataforma é falida, que os investimentos da indústria do petróleo passarão longe da cidade saúde e que a mão de obra que será empregada nessas empresas virá toda de fora do estado.

Não bastasse a mentira do petróleo, um vereador municipal propôs, este ano, um bizarro projeto de lei para acabar com a reserva Paulo César Vinha (o “Parque de Setiba”), abrindo o espaço para a construção de condomínios fechados (para elite, como se fez com a “Aldeia da Praia” – há muitos anos – e com a “Praia dos Padres” – há pouco tempo), hotéis cinco estrelas (que não empregam a população local) e, até mesmo, um aeroporto internacional (numa cidade que recebe, a cada ano que passa, cada menos turistas). (Só pra constar, o vereador em questão deverá ser o mais votado na cidade nesta eleição).

Iniciativas como essa são comuns (e até esperadas) num país onde consciência ambiental é algo por fazer (aliás, num país onde quase tudo está por fazer, inclusive o próprio povo, como diria Darcy Ribeiro).



Incomuns e exemplares são iniciativas como a do fotógrafo Sebastião Salgado. E é com o exemplo do fotógrafo capixaba que eu gostaria de concluir este longo “post”. Falando sobre Salgado em seu blogue, Cristóvão Buarque comentou sobre a visita que fez a um projeto de recuperação da Mata Atlântica mantido pelo fotógrafo aqui no Espírito Santo:

“É surpreendente como uma floresta destruída pela ambição econômica e estupidez ecológica, como ocorreu com a Mata Atlântica, pode ser recuperada graças à vontade de duas pessoas e às dezenas de outras que eles dois (Salgado e a esposa, Lelia) mobilizam”.

“(...) o Brasil seria diferente se o que ele faz em Aymorés fosse adotado pelo Ministério do Meio Ambiente como um projeto nacional”.

“Levado a todo o País, plantando arvóres, recuperando nascentes de rios, fazendo renascer nossas florestas”.

“Em poucos anos, o Brasil seria outro. Sem perder o que tem de bom, teria recuperado o que tinha de bom e perdeu”.

“Não será possível repetir os "cinquenta anos em cinco", de JK, na indústria, na agricultura. Nem mesmo na educação e saúde isso é possível em pouco tempo. Mas é possível dar os passos necessários para recuperar nossas florestas em cinco anos, tanto quanto foi possível fazer uma nova capital”.

“A recuperação das florestas brasileiras, criando emprego e mudando a paisagem brasileira poderia ser a marca do governo Lula, tanto quanto Brasília foi a marca do governo JK.
Ainda é tempo. Se a ministra Marina tomar uns dias para visitar o Instituto Terra, ver o que Sebastião e Lelia fizeram em cinco anos, comparar a terra nua e seca ao lado, com a terra cheia de nascentes e florestas do Instituto Terra, ela certamente poderia repetir esta experiência em escala nacional”.

“Não é difícil. Tião e Lelia mostraram que duas pessoas podem fazer isso privadamente, em 900 ha. Muito mais poderemos fazer no País inteiro se o Presidente quiser”.

“Em cinco anos criaríamos empregos, plantaríamos árvores, mudaríamos a paisagem brasileira, daríamos uma virada no rumo destrutivo dos últimos cem anos, e deixaríamos uma marca definitiva do nosso governo”.

“Mas antes precisamos mudar de mentalidade”.

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