CINEMA CONTEMPORÂNEO, RELEITURAS E CAMINHOS (uma tentativa de ser mais profundo ou só mais um texto pretensioso)
Assisti no último sábado ao filme Dogville, do dinamarquês Lars Von Trier. Trier foi um dos cineastas dinamarqueses diretamente ligado ao Dogma 95, movimento que se opunha às narrativas cinematográficas tradicionais (aos chamados “filmes de festival”) e buscava propor um novo cinema (que tem muito de Cinema Novo, vale dizer). Filmes como “Os Idiotas” (de Trier) e “Festa de Família” são representativos desse movimento que tem entre seus “dogmas”, a eliminação de artifícios como cenários, iluminação, gruas, trilhos e afins. Os filmes, segundo o “Dogma 95”, deveriam ser filmados com câmera na mão. A história, o drama psicológico dos personagens, era o que sustentava a narrativa. As locações eram todas reais e não era permitido acrescentar itens cenográficos às cenas. Pretensioso ou não, o fato é que o movimento foi algo que aconteceu para mexer um pouco no marasmo que o cinema se encontrava.
Infelizmente, nem o próprio Trier – famoso por suas incoerências – conseguiu levar o “Dogma 95” adiante. Filmes recentes do autor, como “Dançando no Escuro” (aquele da Björk) e interessantíssimo “Dogville” desrespeitam muitos dos dogmas estabelecidos em 1995 pelo próprio Trier. Contudo, a ruptura com o “Dogma 95” não é completa. Elementos do aprendizado que o movimento proporcionou a Trier podem ser observados, por exemplo, na ausência de cenários em “Dogville”. A câmera na mão também está lá assim como a ênfase nos atores. Contudo, “Dogville” vai além. O filme flerta com o teatro (o cerebralismo de Brecht está presente no filme) e com a literatura (a estrutura é de uma fábula e a personagem principal guarda traços da Cinderela). As referências estão todas ali.
Aliás, as referências são algo que merecem destaque no filme. A Elm Street, pra quem não lembra era a rua de Freddy Krugger. Jason e Chuck também estão presentes, assim como Pandora, o Cavalo de Tróia, Tomas Édson e a Graça (Grace). Essa espécie de marcação que os nomes oferecem, parecem fazer parte de um esquema narrativo que contribui menos para contar uma bela história (objetivo do cinema “tradicional”) do que para causar um efeito e trazer ao palco (o cenário de Dogville não é nada além disso: um palco) uma problemática que permite longas reflexões.
Em meio a essa ousadia toda, Nicole Kidman, estrela do “star sistem” norte-americano. Além de talento, Nicole traz ao filme os holofotes, o que reforça ainda mais seu efeito crítico: as luzes dos holofotes fazem sombras maiores.
Com “Dogville”, Trier consegue ampliar alguns pontos do “Dogma 95” (levando-os ao grande, ou médio, público). Ele mostra como é possível fazer cinema com pouco dinheiro. Um cinema mais cerebral, no qual roteiro, atores e idéias dizem mais do que efeitos especiais e “garotos de mouse”, como fala Trier, poderiam fazer. (Segundo o diretor, a idéia de “Dogville” nasceu após ter assistido Senhor dos Anéis e seus efeitos espetaculares).
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Li nesse fim de semana o artigo de Peter Wollen, Cinema e Política, publicado no livro “O cinema no século”, uma coletânea de artigos sobre cinema (organizado por Ismael Xavier), e suas variadas relações (indústria, história, jornalismo, política, etc). No referido artigo, Wollen fala de sua própria experiência como crítico e cineasta e comenta o cinema de contra-corrente, realizado por cineastas como Godard e Antonini nos anos 60 e 70. Wollen, num determinado ponto, opõe sete pontos que diferenciam esse novo cinema do cinema comercial (hollywood). Obviamente, muitos dos pontos destacados pelo articulista para caracterizar o cinema de Godard, por exemplo, foram retomados, num outro contexto, é claro, pelos dinamarqueses do “Dogma 95” (talvez no segundo caso, muito do que foi dito existiu mais efetivamente enquanto discurso que enquanto prática, o que, contudo, não diminui a importância do movimento no contexto representado pelos anos 90).
Tanto no cinema “alternativo” dos anos 70 (podemos incluir aqui o Cinema Novo) quanto nas iniciativas do “Dogma 95” buscam, de uma forma ou de outra, aproximar o cinema da arte e buscar a capacidade crítica do espectador. A reflexão é algo que se faz necessário, mesmo depois que o filme acaba. É preciso dar ao espectador o tempo para relacionar a idéia do filme ao mundo real. O real e o simbólico, como explica Wollen, citando Lacan, trabalham mais do que o imaginário nesse cinema “alternativo”.
Pensar no cinema “alternativo”, fora das estruturas viciadas de financiamento e necessidade de lucro que a indústria do cinema impõe é importante num país como o Brasil, especialmente nessa retomada do cinema nacional, em que os orçamentos crescem cada vez mais.
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Mudando um pouco de assunto, gostaria de voltar aqui a uma discussão proposta pelo filósofo Alessandro Darós, numa lista de discussões via e-mail, sobre a necessidade de falarmos sobre questões mais técnicas em torno do cinema. Quando citou o diretor de “Lavoura Arcaica”, falando sobre a montagem do filme, Alessandro destacou a forma como o diretor trabalhou a passagem das cenas que, segundo ele, queria que fosse feita de maneira sutil, sem a artificialidade que o corte apresenta.
Assistindo ao making-off de “Confissões de uma mente perigosa”, fiquei impressionado como a maneira como as cenas foram filmadas. A transição de cenários aconteceu de forma muito interessante. Em vez do tradicional fundo azul, George Clooney (o diretor) trabalhou com cenários reais que, de certa forma, captavam muito do que acontece nos programas ao vivo da televisão, realidade trabalhada pelo filme (o personagem principal é Chuck Barris, inventor do “Show de Calouros” e do “Namoro na TV”) e bem próxima de Clooney (sei pai trabalhara na TV, em programas ao vivo). A troca de cenários (nas cenas onde o estúdio de TV apareciam) era feita no ato, o que exigia um esforço tremendo dos atores, que precisavam trocar de roupa rapidamente e correr por trás da câmera, entre outras coisas. O resultado desse trabalho foi uma sutileza belíssima, que transparece no filme. A euforia da TV, como diz Sam Rockwell, ator que interpreta Chuck Barris, acabou contaminando o filme, devido à utilização das estratégias típicas dos programas ao vivo. Numa outra escala (estamos falando de Hollywood), isso lembra o isolamento dos atores em “Lavoura Arcaica”.
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Ao contrário de “Lavoura Arcaica” ou “Confissões de uma mente perigosa”, “Dogville” faz questão de mostrar a falsidade das coisas: não apenas os personagens – os moradores de Dogville - são despidos de suas máscaras, mas também o próprio cinema é um pouco desmascarado. Não há pretensão de ser real, justamente o oposto do que acontece no cinema comercial norte-americano (ou no cinema realista). Não há, como indicam os manuais de roteiro, uma busca pela verossimilhança. O distanciamento – propício à reflexão – é permitido ao espectador, que pode enriquecer ou esvaziar o filme, dependendo de como o observa (ou lê, pois trata-se de uma fábula também).
São caminhos diferentes. Opções narrativas novas são importantes para mostrar que o cinema não é uma arte tão engessada como pode parecer. Embora muita coisa pareça esgotada e o pareça impossível sair do clichê, sempre aparece alguém que dá um passo adiante, ainda que seja retrabalhando as velhas estruturas.
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