segunda-feira, junho 21, 2004

DOGVILLE E OLHARES POSSÍVEIS



Como toda fábula, Dogville presta-se a diversas interpretações. Sua estrutura narrativa pode ser dobrada e desdobrada, associada a outros elementos, remetida a outros lugares para falar de diversas coisas. Não há paredes que limitem a imaginação do leitor de uma fábula.

Dogville é uma cidade sem paredes. Nós, espectadores, podemos invadi-la, disseca-la, observa-la à vontade, pois é pra isso que aqueles personagens (exagerados, como todo personagem) estão ali. Para serem observados. E para que, observando-os, possamos nos observar também. E observar o mundo que nos cerca.

Grace (o nome já diz muito do que será o personagem de Nicole Kidman no filme) chega a Dogville fugindo de uma realidade que a desagradava. É recebida com receio pelos moradores de Dogville e precisa esforçar-se para ser aceita. Consegue, à custa de muito trabalho, fazendo o desnecessário, aquilo do qual ninguém sentia falta mas que, uma vez começada, tornava-se essencial. Dogville aceita Grace. Ela torna-se importante. Cada vez mais importante. Mas Grace torna-se importante, mais importante, na medida em que atende a mais necessidades dos moradores de Dogville. Ela, Grace, torna-se objeto, precisa estar sempre disposta a suprir as necessidades dos pobres moradores de Dogville.

Como li em outra crítica (e como Lars Von Trier tenta deixar claro), a referência à sociedade norte-americana que culminou na invasão do Iraque e na xenofobia é bem nítida (embora eu, admito, não o tivesse percebido enquanto assistia ao filme). Grace são os imigrantes que chegam aos EUA no pós-guerra e ajudam a reconstruir o país depois da quebra da bolsa se Nova York. Os moradores de Dogville são os norte-americanos, que abraçam os imigrantes, enquanto eles têm utilidade. A vingança de Grace, é quase o 11 de setembro.

Apesar dessa estrutura de crítica (ou provocação) à sociedade norte-americana, não foi esse o ponto do filme que mais me chamou atenção, mas a questão psicológica que a narrativa trás à tona. O ser humano e sua insaciabilidade. O amor que consome, que exige do objeto amado retorno, compensação. Dogville sobre como fazer o bem para ser aceito é amarrar-se a uma condição de eterna obrigação com o outro. Uma vez que você acostuma o outro com sua atenção, com seu cuidado, com sua ajuda, a dependência dele com relação a você aumenta até o ponto onde você acaba subjugado, mesmo que não haja paredes para impedir sua fuga. Dogville fala também da arrogância da bondade. E fala de Lars Von Trier. Da forma como o dinamarquês vê o mundo. Da forma como vê o ser humano: como cão. Irracional, automatista em sua maldade, cruel, insaciável. É a visão de Trier que Grace parece incorporar ao final do filme. É esse olhar que a lua (as luzes que sensibilizam a câmera?) revela.



Além de uma história incômoda, que retoma uma característica de um certo cinema contemporâneo (Magnólia, Irreversível e mesmo Amarelo Manga), Dogville é também um olhar sobre o cinema (a ausência de paredes é, também uma forma de mostrar que cinema é ficção, é cenário). O diálogo com outras artes, especialmente, no caso de Dogville, o teatro é interessante para abrir novas portas ao cinema contemporâneo. A interpretação dos atores está impecável (Nicole Kidman, como sempre, linda e perfeita no papel), pois o filme sustenta-se, basicamente, nas interpretações. Não há a possibilidade de planos longos, belas fotografias ou coisas tipo. O que há, em Dogville são: excelentes atores, uma narrativa que remete à fábula e imaginação da parte do espectador. Dogville não é monolítico, mas oferece saídas ao espectador. Apesar da aparente irreversibilidade de algumas coisas (o ser humano “é o cão”), o espectador ainda é livre para ver as coisas de outra forma. Dogville nos permite parar para rumina-lo, depois que o filme acaba.

Lars Von Trier pode ser criticado por muitos motivos. Talvez haja arrogância também de sua parte, em tentar fazer cinema de arte em meio ao mercantilismo absoluto da indústria do cinema. Talvez por colocar o dedo em certas feridas e, como Grace, seu personagem, desagradar por dizer a verdade. Assim como podemos ver Dogville (a cidade e o filme) de muitas formas, podemos ver Lars Von Trier. O que é fato, como diria Orlando, é que ele já fez história. Dogville, querendo ou não, é mesmo um marco no cinema.

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