segunda-feira, janeiro 17, 2005

“Ordinary life is pretty complex stuff” – Parte IV



É possível que a melhor forma de explorar o microcosmo da vida em sociedade seja partindo de nós mesmos. Talvez seja por isso que Pekar tenha se transformado em objeto de sua arte quando resolveu entrar para o mundo dos quadrinhos. Não sei nada de Cleveland, mas sei que quem mora em Guarapari ocupa-se de sua “ordinary life” na maior parte do tempo. Não há muitas maneiras de fugir disso por aqui. Eu, por exemplo, muitas vezes estou às voltas com os buracos das ruas, com a estupidez do trânsito, com as “pessoas de alma bem pequena”, com a incompetência dos administradores, comerciantes e empresários, com os baixo salários, com a falta de perspectivas, com a falta de uma vida cultural...

Guarapari é, essencialmente, um lugar para se experimentar a complexidade do cotidiano. Não poucas vezes, ocorreu-me divagar acerca dessas coisas. Uma vez criei uns personagens, os vermes lunares, a partir de devaneios acerca dos buracos que tomam conta das ruas da cidade. Parece coisa de quem não tem o que fazer, mas não é SÓ isso. De fato, os buracos de nossas ruas são peculiares. Eles surgem da noite para o dia, como se a cidade estivesse apodrecendo e a qualquer momento fosse desaparecer, tragada pelas profundezas. Sob certos aspectos, seria apenas a aceleração de um processo que acontece de uma outra maneira: na realidade, Guarapari está sumindo (ou deveria dizer se consumindo?) aos poucos, dia após dia, governo após governo, verão após verão. É triste começo do fim...

Não seria difícil transformar essa tragédia toda em objeto de arte (Ivan Castilho e Júlio Tigre, contistas locais, fizeram isso, de certa maneira). Mas confesso que não me agrada muito essa coisa de sugar a vida das pessoas pra transformá-las em objeto – mesmo que da arte. Aquele estilo Dalton Trevisan de ser (perder o amigo, mas não perder o conto) não faz minha cabeça. A gente nunca conhece suficientemente uma pessoa pra fazer isso sem cometer injustiças. Se eu conseguisse fazer isso comigo, vá lá! Mas já tentei e o resultado não foi dos melhores. Primeiro porque não gosto de ser incompreendido. Escrever é automaticamente sujeitar-se à incompreensão alheia. Escrever sobre mim mesmo seria saltar no abismo. Não, não. Sou introspectivo demais pra isso e, noves fora, minha vida não é mais interessante do que a sua, a dele, a dela, a deles...

Confesso que quando se vive tanto tempo circulando em ambientes restritos (as mesmas caras, os mesmos risos, os mesmos gostos) fica difícil não se fechar um pouco; fica difícil não sentir vontade de envergar-se, dobrar-se sobre si mesmo e conversar em voz alta com os próprios botões. Vez ou outra o ego escapa e rende um “eu acho aqui”, um “dia desses estava eu acolá”... esse processo é natural. No paranoid. O que me incomoda é a obsessão, o tema único, o umbiguismo...

Se há algo que tento evitar a todo custo é permitir que o Psicotópicos se transforme num diário. Nada contra quem faz isso, alto lá! Tem gente que trabalha muito bem com essa coisa toda de falar de si mesmo sem parecer imbecil. Mas esse não é o meu caso. Agora, por exemplo, já começo a me sentir incomodado.

Tem uma dúvida que sempre se me apresenta em forma de dilema (que é palavra parruda): se a realidade que conheço melhor é a minha, como fazer uma literatura mais intensa e humana sem abrir a guarda e dizer de mim, do que me afeta, do que me toca, do que me vai? Pra mim, o que torna Clarisse Lispector tão viscosaviva é justamente essa capacidade de atirar-se ao ato de escrever, de entregar-se ao leitor sem se preocupar com os sentidos possíveis (mas com o sentir), com as interpretações, com o que será feito dos pedaços seus que ela oferece ao mundo. Ao mesmo tempo, sei que não conseguiria fazer isso. Um pouco por ser tímido (e possivelmente covarde) demais, outro pouco por duvidar da minha capacidade de fazer sem cair no “besteirol em tom confessional” (percebam que me torno repetitivo). Não basta falar de si mesmo para fazer arte. É preciso falar de uma (in)certa maneira. Creio que é isso que diferencia um diário comum do diário de um artista. Mas aqui começo a pisar no terreno perigoso do achismo e dos lugares comuns. Melhor parar. De resto, este “post” já se estendeu demais.

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