“Ordinary life is pretty complex stuff” – Parte I
“O cotidiano é um coisa muito complexa”: traduzindo mal e porcamente, esse é o slogan de “O Anti-herói Americano” (American Splendor), filme de Shari Springer Berman e Robert Pulcin (2003). Premiado em Sundance e Cannes, o filme retrata a vida (na verdade, a confusão entre a vida e a obra) de Harvey Pekar, um arquivista de Cleveland que um dia teve um insight atrás de uma velha judia na fila do caixa de um supermercado e virou “super-anti-herói” de quadrinhos. Essa é -- em linhas toscas, obviamente – uma maneira de resumir mal o filme. Ele é bem mais que isso.
Vale começar dizendo que o filme deve ficar 10 vezes melhor pra quem é fã de quadrinhos. Se estiver sendo lido por um aficcionado dos comix neste momento, peço perdão: até poucas horas atrás eu não sabia nem que Harvey Pekar existia como pessoa, nem como personagem, nem que era amigo de Robert Clump e nem que se casara com uma mulher muito esquisita. Digo mais, eu não fazia a menor idéia de quem era Robert Clump até pesquisar na Internet há poucos minutos. Ignorâncias admitidas, falemos do filme.
American Splendor cativou-me desde a primeira cena. Vamos a ela: Halloween, vemos crianças fantasiadas de super-heróis batendo à porta de uma mulher para pedir doces (algo tipicamente norte-americano). Dentre as crianças, há uma que se destaca por não usar fantasia alguma. “Quem é você”, pergunta a mulher surpresa, como se não compreendesse por quê a criança não usa fantasia. “Sou Harvey Pekar, moro aqui perto”, responde o menino (um aviso, não estou repetindo as frases textualmente, ok? usem a imaginação). Essa primeira cena nos põem e contato direto com o personagem e com o homem Harvey Pekar. Como se percebe no decorrer do filme, a arte de Pekar não é sobre animaizinhos ou super-heróis, mas sobre pessoas comuns, imersas num “cotidiano muito complexo”.
A abertura prossegue, mostrando os créditos, utilizando agora formato dos quadrinhos para apresentar a história e os personagens, ou melhor, os Pekars: o Pekar real (que participa do filme), o Pekar personagem do filme (interpretado por Paul Giamatti) e o Pekar personagem dos quadrinhos (no traço de Crumb). Já nesse ponto, o ordinário começa a ficar complexo.
Na seqüência, o espectador se depara com o homem Pekar num estúdio de gravação, gravando o off que vai apresentar o personagem de Paul Giamatti no filme: um Pekar sem voz, com um nódulo na garganta, prestes a ser deixado pela mulher. Esse movimento parece contribuir para dar a tudo um ar de normalidade. A presença de Pekar no filme é capaz de nos manter mais próximos do real.
Durante todo filme, o foco será deslocado de um Pekar para outro, fundindo dois deles (ou os três) em determinados momentos. Esse movimento é fascinante, porque diz da própria maneira como Pekar parece ver o que faz. No diálogo que tem com Crumb para apresentar a idéia de seu personagem (o roteiro que criou) Pekar bate sempre a mesma tecla: é preciso fazer algo que se pareça com a vida real. O filme parece não perder isso de vista em momento algum.
Gostei muito do filme. Ao contrário de muitos “obras primas” de Sundance, American Splendor não me pareceu pretensioso ou pedante. Diria eu que se trata de um filme que chega à originalidade em vários momentos sem forçar a barra, sem ter isso como meta. Mas isso é opinião minha. Assistaí e deixaquí sei pitaco.
Pra entrar no filme mais preparado do que eu entrei, vai aqui o endereço do blogue do Pekar. Ajuda a sacar como o filme captou bem a essência da figura.
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