"Ordinary life is pretty complex stuff" - Parte II
Por incrível que pareça, “Adaptação” é o filme de Charlie Kauffman do qual menos gostei. Levando-se em consideração que gostei muito do filme, dá pra se ter uma idéia do quanto gostei dos outros.
Kauffman escreveu o roteiro de “Adaptação” – diz ele – num período em que passava por uma crise criativa, por não conseguir adaptar um roteiro. Esse é justamente o drama do personagem, o próprio Kauffnan, que contorna o problema falando de si mesmo, colocando-se como personagem do filme. Estamos falando de Charlie Kauffman, portando é lógico deduzir que além dessa espinha dorsal – representada pelo personagem Kauffman, muito bem interpretado por Nicholas Cage – há toda uma salada de histórias que de misturam e alternam o papel de história principal e pano de fundo.
Adaptação aproxima-se de “O Anti-herói Americano” em diversos pontos, a começar pela mistura de ficção e realidade. Assim como o Pekar, Kauffman também existe no “mundo dos cheiros”, embora não se possa definir ao certo o que há de verdadeiro no Kauffman-Cage e o que é fruto da imaginação (fértil, deve-se dizer) do roteirista de “Quero Ser John Malcovich”. A propósito, “Adaptação” começa no set de “Quero Ser John Malcovich”. Ao fundo, vemos um Cage-Kauffman tímido, retraído, atrapalhando a cena com sua feiúra. A partir daí, é possível ter uma idéia vaga do que é o personagem. Idéia muito vaga, porque ele é pior. O contraste com o irmão gêmeo (Donald Kauffman, este absolutamente inventado, fictício), Charlie torna-se um ser incômodo, repugnante, perturbador. Charlie é incapaz de tomar qualquer atitude. O fluxo mental intenso nunca passa disto: fluxo mental.
No filme, Kauffman aproveita para falar sobre criação (sobre sua arte, a arte de fazer roteiros) e sobre o cinema de uma maneira geral. É interessante acompanhar o diálogo de Charlie com a produtora que quer lhe passar o trabalho de adaptação de “O caçador de orquídeas”. Nessa conversa, Charlie se esquiva, diz que não quer um filme com romance, sexo ou final feliz. Enfim, diz que quer fugir de todos os clichês hollywoodianos. No final das contas, “Adaptação” tem tudo isso (e essa ironia foi muito bem aproveitada, vale dizer, no trailler do filme).
O final feliz de Adaptação envolve uma mudança de Charlie. Envolve um desenvolvimento de sua capacidade de adaptação (no sentido darwiniano, como o filme faz questão de frisar). Nesse ponto, o filme encaminha-se para o final tradicional, hollywoodiano, diferente do final incômodo de “Quero Ser John Malcovich” ou triste de “Confissões de Uma Mente Perigosa”, dois outros filmes roteirizados por Kauffman.
Aqui, cabe pontuar uma grande diferença entre “O Anti-herói Americano” e “Adaptação”: o primeiro parece não chegar aos extremos. Não há uma super-exploração do “potencial dramático” das cenas. Ao que parece, os diretores buscam um realismo no qual o drama da vida real (representada) seja suficiente para tocar, onde não sejam necessários artifícios como câmera lenta ou trilha sonora “intensa”. Como disse na Parte I deste texto, “O Anti-herói Americano” se detém na complexidade do cotidiano. (Seria imbecil dizer que o filme se descuida da forma e abre mão de todos os artifícios: a edição e a utilização de animações deixa isso evidente. Contudo, como disse no texto anterior, o espectador é constantemente chamado à realidade).
Ao contrário de Charlie, que é capaz de irritar o espectador com tanta apatia, Pekar tem um ar convidativo, agradável, confiável – apesar de todo mau-humor e pessimismo.
Apesar das diferenças – e elas são muitas – creio que O "Anti-herói Americano" e "Adaptação" se encontram muitos momentos. Vale pensar alguns pontos, começando pela reflexão acerca dos motivos que levam um artista a tornar-se objeto da própria arte (e isso serve tanto para Bukowski, quanto para Kauffman, Pekar ou Kafka).
Não sou artista, mas ontem, desesperado pela falta de inspiração, disposição e vontade de escrever, acabei escrevendo um texto sobre textos. Um texto que, no fundo, diz de minha relação com a escrita e com o Psicotópicos. Mesmo com o desânimo, escrevi três páginas. Fiquei meio assustado com isso. E mais ainda com a coincidência de assistir “O Anti-herói Americano” justamente depois de passar por essa experiência kauffmaniana...
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