UMA SALADA CÔMICA, COMPLEXA E CAÓTICA: pitacos, cuspidas, redes, citações, colagens e Outros.
Estava fazendo uma consulta rápida à seção Pérolas do Vertibular, do site Releituras e, para minha surpresa, deparei-me com algumas tiradas que beiram a genialidade. Não, não; não estou brincando não. Em meio às atrocidades lingüísticas, surgiam petardos perspicazes que me recuso a acreditar que sejam simples frutos da ignorância.
Observem, por exemplo, a seguinte afirmação: ”Na Grécia, a democracia funcionava muito bem, porque os que não estavam de acordo, se envenenavam. Digam se não há um fundilho de verdade nessa história? Quem acredita na pureza da democracia grega – garantida pelos escravos -- que atire a primeira pedra!
Outra frase parece dizer da corrupção no universo capitalista, reparem: ”O objetivo da Sociedade Anônima é ter muitas fábricas desconhecidas.” Fabricas de dinheiro sujo então, nem se fala!
E o que dizer da frase “O Brasil é um país abastardo com um futuro promissório? Quando a gente pára pra pensar na dívida externa, não há como discordar do jovem vestibulando.
Outros são um pouco mais agressivos e conspiratórios. Um deles se interroga acerca das práticas do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o saudoso (perdoem a ironia), FHC. Compartilhem da indignação do aspirante a universitário: E o presidente onde está? Certamente em sua cadeira, fumando baseado e conversando com o presidente dos EUA.
Há também insights interessantes acerca do contexto pós-moderno, como a seguinte categorização: A História se divide em 4: Antiga, Média, Moderna e Momentânea (esta, a dos nossos dias). Não dizem os teóricos, como Gilles Lipovetzki, que vivemos sob “O império do efêmero”? Não estamos no tempo do contingente, do passageiro ou, como diria o nobre calouro, do momentâneo?
Alguns usam de ironia voltaireana para falar da realidade brasileira, como este, que diz que ”A Previdência Social assegura o direito à enfermidade coletiva”. Essa observação deve estar baseada em dados empíricos, colhidos diretamente dos corredores dos hospitais públicos.
Outros resumem brilhantemente o problema terceiro mundo dizendo: “O problema fundamental do terceiro mundo é a superabundância de necessidades”. Alguém discorda?
No site do Releituras há outras dezenas de frases de vestibular, mas nem todas são genialidades. Algumas são entristecedoras, como essa: "A televisão é influenciativa em nossas vidas. Quantas vezes não compramos um tênis porque vemos na TV? A programação deveria ser mais educante(...)". Ou ainda, trilingüismos, do gênero: “O bem star (sic) dos abtantes endependente (sic) de roça, religião, sexo e vegetarianos, está preocudan-do-nos”. E, na linha “trash”, frases como esta: ”Também preoculpa (sic) o avanço regesssivo da violência”.
Há também o honesto que, objetivamente, responde: "Não cei". Ou aquele que, quando interrogado sobre “O que entende por helenização?", rebate na lata: "Não entendo nada".
Nas provas, há também espaço para o hermetismo. Tentem interperpretar, por exemplo, a seguinte frase: “A unidade de força é o Newton, que significa a força que se tem que realizar em um metro da unidade de tempo, no sentido contrário. Um dos vestibulandos poderia usar essa frase como um exemplo de lenda, pois, como ele afirma, “Lenda é toda narração em prosa de um tema confuso”.
As “Pérolas do Vestibular” fazem rir, sim. Vale tomar emprestado aqui a teorização de Freud sobre os chistes, essa transferência de nossas frustrações e medos – sobretudo o medo do ridículo – que projetados no outro, produzem um efeito cômico. Freud é um cara estranho mas, talvez nesse ponto, seu pensamento faça sentido.
Antes de partir para uma conversa mais séria em torno desse assunto, vale dizer que, provavelmente, nem todas as frases citadas aqui foram escritas por pessoas oriundas da classes C, D e E, para usar uma definição cara aos jornalistas. É certo que, muitos desses vestibulandos, estudaram em boas escolas e, simplesmente, não se interessaram por aprender a escrever ou mesmo ler qualquer coisa. Essa situação é corriqueira. Dito isso, passemos às outras causas do problema.
Comicidades à parte, as pérolas alertam para a situação do Ensino Médio por estas bandas. Tirando os deboches (para mim, muitas dessas frases são deboche mesmo), há textos que parecem inventadas, pela tamanha incompetência lingüística que demonstram.
Segundo David Harvey (Condição Pós-moderna), Lyotard, em sua teoria dos “jogos de linguagem”, concebida sob a influência de Wittgenstein, opõem as “qualidades abertas potenciais das conversas comuns” (as “conversas cuspidas”), que podem ser mudadas e flexibilizadas para encorajar a maior flexibilidade da enunciação, à rigidez com que as instituições, que Foucault chamaria de domínios-não-discursivos, “circunscrevem o que é ou o que não é admissível em suas fronteiras”. “Os reinos do direito, da academia, da ciência e do governo burocrático, do controle militar e político, da política eleitoral e do poder corporativo circunscrevem o que pode ser dito e como pode ser dito de maneiras importantes”. No caso do vestibular, que é a porta de entrada para o “reino da academia”, essa definição do “como pode ser dito” começa na exigência de “excelência textual”. Essa é uma das primeiras etapas do processo seletivo.
Em certa medida, isso é até compreensível, tendo em vista que a capacidade de interpretar e compreender textos com determinado grau de complexidade é uma prerrogativa para se locomover de forma minimamente razoável no universo acadêmico. Voltarei a esse assunto mais à frente.
Uma coisa que, acredito, deveria ser revista é a questão do vestibular. Lembram da frase sobre a unidade de força, aquela incompreensível que citei acima? Pois é, nem aquilo eu conseguiria fazer se me propusesse a escrever sobre física: sou um completo ignorante nesse assunto. Assim como em matemática e química. Sob esse aspecto, taxar de incompetentes, incapazes ou, simplesmente, de burros os vestibulandos que tentam “enrolar” para dar conta do recado em disciplinas pelas quais não têm o mínimo interesse é um bocado maldoso.
Recorramos agora ao lugar comum -- que continua válido – para perguntar: por que – diabos – um cara que é apaixonado por história precisa perder horas do seu dia estudando matemática só pra passar na porcaria do vestibular, sendo que, assim que colocar os pés na faculdade, poderá esquecer de tudo, prazerosamente, sem culpa e sem ônus? Talvez esse sistema só preste mesmo para alimentar a gigantesca rede de “cursinhos pré-vestibular” que se instalou no Brasil e que garante à elite tupiniquim vagas nos cursos mais concorridos das melhores universidades do país.
Nesse fim de semana, assisti ao documentário “O Prisioneiro da Grade de Ferro (autro-retratos)”, de Paulo Sacramento. O filme foi o resultado de uma oficina de vídeo dada por Sacramento aos presos do complexo penitenciário do Carandiru poucos meses antes da desativação. Na oficina, os detentos aprenderam a manipular as câmeras e, durante cerca de sete meses, filmaram a realidade do presídio. Findo esse período, Sacramento (que -- vale dizer -- foi o montador de “Amarelo Manga”, do pernambucano Cláudio Assis) editou as imagens captadas pelos presidiários para fazer uma obra excelente, um registro impiedoso da realidade carcerária brasileira como poucos foram capazes de realizar até hoje. O documentário é forte, infinitamente mais áspero que a versão romantizada de Babenco (xingado por Cláudio Assis na última entrega do “Oscar” brasileiro) para o livro de Dráuzio Varella, o best seller “Estação Carandiru”.
Poderia falar muitas coisas sobre “O prisioneiro da Grade de Ferro”, mas prefiro deter-me aqui no aspecto do uso da linguagem por parte dos presos quando diante das câmeras. Salta aos olhos o esforço dos detentos para ser aproximarem da “norma culta” da língua. Nesse esforço desesperado, o resultado final é desastroso, semelhante ao apresentados pelos vestibulandos que ora discutimos. Quando os presos conseguiam ficar à vontade para deixar sua linguagem particular vir à tona, o resultado era de uma riqueza fantástica. Como quando as imagens mostravam os rappers ou os homossexuais, absolutamente “em casa” com seus próprios códigos, um híbrido de linguagem coloquial, gírias e neologismos. Uma espécie de dialeto potente, de enorme capacidade expressiva.
Dia desses, a Laura, do blogue “O Imigrante é um Forte”, escreveu sobre esse assunto na Praça do Zé. Acompanhemo-la um pouco:
No âmbito da linguagem, os indíviduos são doutrinados a acreditar que o nosso idioma pode ser compreendido à luz da dicotômia presente nos conceitos de certo e errado. A partir dessa idéia, toda a Língua Portuguesa passa a ser pensada como um conjunto de regras que precisam e devem ser aprendidas a fim de alcançarmos a dita "excelência textual". O erro lingüístico daquele que, pasmem, não conhece e não respeita o padrão culto da língua é severamente punido (simbolicamente falando) com críticas e piadas como a que acabamos de ler.
No “post” em questão ela usava uma piada que, aqui, pode ser tranquilamente substituída pelas “Pérolas do Vestibular” que, tenho certeza, arrancaram uma “pá de risos” da galera, como diria um ex-colega paulista. Lá na Praça, a Laura terminava o texto citando um poema genial de Patativa do Assaré, um belo exemplo de que a capacidade de se expressar, às vezes, independe do domínio lingüístico. Guimarães Rosa sabia disso como ninguém, tanto que apropriava-se de forma magnífica das particularidades lingüísticas do interior mineiro ou do sertanejo para fazer obras de arte do porte de “Grande Sertão: veredas”.
A academia, no entanto, tem suas próprias regras, como já dissemos acima. Entre elas, está a exigência de um certo tipo de competência lingüística, de “excelência textual”. É nesse ponto que a população mais pobre sai perdendo. Nesse ponto, toda riqueza lingüistica deles de nada serve. Na academia, o que conta é a norma culta. E, acredito, todos merecem a chance dominar essa norma, para abrir determinadas portas. Os professores que organizam essas infames provas de vestibular e corrigem redações como as citadas acima deveriam se dar conta disso.
Impedir que as pessoas tenham acesso às diversas variantes da língua é terrível. Essa postura só intensifica o processo – já em curso – de tribalização do mundo. Tribalização que nesse caso é perigosa, pois, futuramente, pode representar a impossibilidade da comunicação entre grupos distintos, empurrando os acadêmicos para as “torres de marfim” e o cidadão comum para os guetos, sejam eles sociais ou lingüísticos (observem a linguagem dos sambistas cariocas, como Bezerra da Silva, de Rappers, como Marcelo D2 e outros tantos e mesmo dos traficantes). Se o Estado exige das pessoas a competência lingüística para considerá-los cidadãos, que dê a essas pessoas o direito de apropriarem-se dessa língua oficial.
A teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas, para concretizar-se, requer o domínio lingüístico das partes envolvidas num processo argumentativo para que a intersubjetividade aconteça. Quando não há esse acordo -- chuto eu -- é necessário que, para haver diálogo, haja uma predisposição dos envolvidos no sentido de tentar compreender o outro. No caso do vestibular, isso não é possível. Trata-se de um “processo seletivo”, um processo de darwinismo social onde vencem os “melhores-num-sentido-bem-específico”.
A mim, agradaria muito se a vida na terra não dependesse tanto das instituições – dos “domínios-não-discursivos” – que compõem nossa sociedade. Mas sei que, hoje, seria impossível conceber tal realidade. Por mais esvaziadas que estejam, as instituições modernas (e mesmo algumas pré-modernas) ainda são suficientemente fortes para engessar a todos aqueles que “não dançam conforme a música”. Acredito que a criação de espaços sociais alternativos passaria pelo enfraquecimento de certas instituições. Enfraquecimento que, desconfio, deve acontecer de dentro pra fora, daí a necessidade de respeitar certas conveniências, como diria Adriana Calcanhoto, para poder infiltrar-se nesses universos.
Aliás, já que falamos de Adriana Calcanhoto, nada melhor do que um pouco dela pra fechar este “postão”.
“Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto do bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos
Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto do bom senso
Eu não gosto dos modos
Não gosto
Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas
Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto do bom senso
Eu não gosto dos modos
Não gosto
Eu aguento até os estetas
Eu não julgo a competência
Eu não ligo para etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
Eu compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades
Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto do bom senso
Eu não gosto dos modos
Não gosto
Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem…”
(Adriana Calcanhoto)
Sei que este “post” tem um quê de salada, mas aproveitem. Temperem à gosto e mandem ver. Talvez não mate a fome, mas dizem que é saudável e nutritivo.
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