O FIM DA UTOPIA
“Berlin Ocidental, verão de 1967. Podia ser outro lugar, outro momento. Mas nossa história começa aqui. O filósofo Herbert Marcuse vai falar. Ele vive nos Estados Unidos. Veio especialmente para uma série de conferências. Título de seu trabalho: O Fim da Utopia.
A jovem platéia está intrigada. O que Marcuse está querendo dizer com isto? O filósofo começa explicando as razões do título. Utopia é um conjunto de idéias de transformação social, tidas como impossíveis. Idéias que, normalmente, prolongam uma série de condições existentes na construção de um mundo melhor.
Marcuse não queria falar de coisas impossíveis, muito menos prolongar o existente. Veio para pregar uma ruptura completa; gerando o fim da utopia.
“Todas as forças materiais e intelectuais que podem contribuir para realizar uma sociedade livre estão presentes no mundo de hoje. Se não atuam é porque a sociedade se mobiliza em peso contra a possibilidade de sua própria liberação. Mas uma situação desse tipo não é suficiente para chamar de utopia um projeto de transformação”.
Em seguida, o velho filósofo falou algo que é bastante conhecido dos teóricos do III Mundo. Não há um sábio, disse ele, mesmo um sábio burguês, que seja capaz de negar a evidência de que é possível acabar com a fome e a miséria através das forças atuais de produção. Isto só não acontece por causa da desorganização sócio-política do Planeta.
Estavam todos de acordo até aí. Marcuse avançou entretanto sua idéia nova que parece ter trazido especialmente para este momento. As verdadeiras mudanças só aconteceriam se houvesse a liberação de uma nova dimensão humana, se surgisse uma nova antropologia cujo objetivo fosse o de transformar as necessidades. Uma delas, vital, é a necessidade de liberdade e tudo o que ela implica.
Ao longo de quatro dias de discussão, Marcuse insistiria nesse tema. Parecia preocupado em precisar o que significa uma nova necessidade. O desenvolvimento das forças produtivas atingira tal nível que estava a exigir o despertar de novas necessidades à altura do momento. Mas quais seriam elas?
Quem acompanhasse toda a exposição não teria dificuldade em compreender o filósofo. Num primeiro lance, as novas necessidades poderiam ser entendidas como a simples negação dos valores que sustentam o sistema. Negação do princípio da produtividade, da competição, do conformismo.
No lugar desses valores carcomidos, entrariam a necessidade de paz, de tranqüilidade, de estar só consigo mesmo (ou com as pessoas amadas), de beleza, felicidade gratuita e de uma esfera particular.
Essas novas necessidades levariam a uma transformação total do mundo técnico. Cidades seriam reconstruídas, a natureza restaurada. O desvario da industrialização revisto de ponta a ponta. Atenção, advertia o filósofo: não se trata de uma regressão romântica a uma época anterior à técnica. Os benefícios da técnica só ficarão realmente visíveis quando se livrarem do capitalismo.
Faltava dizer que o socialismo existente no mundo não tinha realizado este projeto. Marcuse mostrou que a idéia do socialismo estava diretamente ligada ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho. No instante em que surgiu, isto era justificável e necessário. Mas agora, não era mais essa a diferença entre uma sociedade livre e uma sociedade oprimida. Com pena de parecer ridículo, era preciso ter coragem para afirmar que a característica distinta de um mundo novo seria a dimensão estético-erótica – fórmula que sintetiza a convergência da técnica e da arte, do trabalho e do jogo.
Marcuse concluiu sua exposição afirmando que era preciso correr o risco de redefinir a liberdade de tal maneira que não pudesse ser confundida com nada do que aconteceu até agora. O novo motor da sociedade, já satisfeita materialmente, seriam aspirações liberadas, necessidades instintivas, inclinações espontâneas do ser humano.
E como essas coisas são utópicas apenas aparentemente, pois, no fundo, significam a negação histórico-social da ordem estabelecida, o filósofo conclamou todos a participarem de uma oposição realista e pragmática, livre de todo derrotismo, pois não era possível trair a liberdade emergente”.
(Trecho do Livro Vida Alternativa: uma revolução do dia a dia de Fernando Gabeira. As imagens utilizadas no "post" são de Dany "Le Rouge", um dos principais líderes do movimento de maio de 68, que incendiu Paris naquele ano que, como diria Zuenir Ventura, não acabou. Independente dos rumos que o movimento de 68 tomou, acredito que nada justifica seu esquecimento. É possível que os sonhos daquela juventude sejam desconhecidos pela maioria dos universitários brasileiros hoje. O próprio movimento estudantil brasileiro é desconsiderado. Mas já falo demais. Concentrem-se, por favor, no texto do Gabeira: ele tem servido de referência para muitas das discussões que promovo aqui no Psicotópicos.)
Clique aqui para ler mais sobre Maio de 68
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home