terça-feira, outubro 26, 2004

OS PIRATAS



Nos últimos meses, tem me chamado atenção o grande número de matérias jornalísticas que abordam a questão da pirataria. Estamos cansados de saber que pirataria é crime (inclusive pra quem compra o CD) e que muitas gravadoras estão quebrando em função dessa prática.

Bom, esclarecida a questão óbvia (abordada por toda matéria televisiva que aborda o assunto), vamos para as entrelinhas.

Ontem à noite, o Jornal Nacional deu grande destaque a uma matéria sobre a pirataria (mais uma vez). Na matéria, o principal argumento utilizado contra a pirataria é o de que ela impedia as gravadoras de investirem em novos talentos (uma considerável evolução, deve-se dizer, já que antigamente o argumento de que CD pirata estragava o aparelho era lugar comum).



Não tenho a memória muito boa, portanto, pense comigo, leitor: quantos “novos talentos” foram lançados por grandes gravadoras nos últimos anos? Detonautas? Felipe Dylon? Dado Dolabela? Vanessa Camargo? CPM 22? Não, não. Esses não valem: estamos falando de TALENTOS, não de estrelas cuidadosamente construídas pelas estratégias de marketing.

Para não parecer que estou sendo excessivamente parcial, aqui vai um depoimento do Dr. Valdemar Ribeiro, Diretor geral da Apdif do Brasil - Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos: “Para uma gravadora, o CD é muito caro: para criar um cantor, fazer o público gostar dele, ter fama, etc, primeiro a gravadora vai localizar o talento e depois vai trabalhar a imagem dele para mostrar o potencial. Para fazer o CDs, a gravadora tem gastos com o estúdio, com equipamentos caríssimos. São muitas despesas: ele grava, não fica bom, vai ter que gravar de novo. Isso inclui mais gastos com o estúdio, pessoal do som. De repente o cantor tem algum problema na voz, ele vai para o médico: mais gastos! Depois do Cd pronto, tem gastos com a logística, venda, marketing, etc” (ler entrevista na íntegra).

Por mais que o discurso das gravadoras tente convencer do contrário, o fato é que o lançamento de novos artistas raramente acontece baseado na qualidade do material, naquilo que ele tem de inventivo e original, mas no potencial de comercialização que ele oferece. Esse potencial é medido com base em modelos simplistas, do tipo: pode ser o novo Zezé di Camargo e Luciano, o novo Menudo, o novo Mamonas Assassinas! Essa é a nova Ivete Sangalo, a nova Sandy, a nova Elis!!! Não importa apreciar o material, mas vende-lo. Se ele não se vende sozinho, faz-se mister torna-lo vendável – à custa de investimento pesado em material de divulgação, jabás e aparições televisivas.

Olhando dessa forma, a idéia das gravadoras pararem de lançar “novos talentos” é até agradável!



Outro argumento, defendido por Gabriel, “O Pensador”, o rapper mauricinho, é de que o disco pirata lesa o artista. Deve-se dizer aqui que a porcentagem que o artista recebe pela venda de CDs é muito pequena em relação ao lucro total de uma gravadora. Boa parte da renda do CD serve para cobrir os gastos com divulgação -- todo mundo sabe disso!

Esse investimento em divulgação seria desnecessário se o CD tivesse realmente qualidade. Pensemos no Los Hermanos e no espaço que “O Bloco do Eu Sozinho”, segundo CD da banda, conquistou quase que sem tocar nas rádios. Pensamos no sucesso que a banca capixaba Dead Fish conquistou dentro de seu nicho. Para os capixabas, eu pergunto: qual o melhor CD do Casaca? O primeiro, independente, produzido aqui no ES; ou aquele lançado pela Sony, suavizado, no qual mal se pode ouvir as batidas do tambor de Congo?



Para Lobão, que se tornou um ícone da luta dos artistas independente contra as grandes gravadoras, “a pirataria é o sinal de uma mudança de paradigma nas relações do produto (no caso artístico) com o consumidor. É muito mais um sintoma do que uma doença” (ler entrevista na íntegra. A observação de Lobão é importante, especialmente na discussão sobre as novas tecnologias. O diretor da Apdif, citado acima, chega a pedir inclusive um controle na venda de Gravadores de CD (esses que utilizamos em nossos PCs) como forma de combater a pirataria. Isso é o cúmulo! É restringir o acesso das pessoas às novas tecnologias para garantir que as gravadoras continuem ganhando milhões. É abraçar a lógica capitalista em detrimento do cidadão! Alguém aí já parou para se perguntar as possibilidades libertadoras das novas tecnologias, a forma como podemos aproveita-la em na educacionais, na facilitação da troca de informações?

São as novas tecnologias que, na realidade, têm dado chance aos novos talentos. Se não tornam ninguém milionário, como um Alexandre Pires da vida, garantem ao artista a possibilidade de produzir seu disco e, se o trabalho tiver qualidade, fazer circular num circuito alternativo que lhe permita viver tranquilamente de sua arte. Esses microcontextos para a produção fonográfica representam um avanço, na minha humilde opinião. Dessa forma cada vez menos gente será obrigada a engolir KLBs goela abaixo. Por meio das novas mídias, pode-se reforçar a divulgação do circuito alternativo, criando inclusive cooperativas musicais, para lançamento de novos talentos (esses realmente talentosos). Pensar o universo musical brasileiro e mundial apenas a partir das grandes gravadoras é ser reducionista. A realidade que elas representam está muito mais perto da indústria (cultural) que da arte.

Lobão acredita que quem ajuda a pirataria “são as gravadoras que lançam discos de péssima qualidade no mercado a preços altíssimos atrelados ao jabá milionário e criminoso concedido às rádios”. E é verdade. O preço dos discos é absurdo e, em vez de cair, vem subindo de uns anos pra cá. O que fazer, então? Posicionar-se ao lado das gravadoras, combater a pirataria e impedir que a “massa” tenha acesso à produção musical brasileira?

A discussão sobre pirataria precisa ser ampliada no Brasil. Precisamos pegar o embalo do Creative Commons e repensar o conceito de propriedade intelectual. No mundo contemporâneo ele está muito menos ligado ao conceito romântico do artista grande criador, do que à simples lógica capitalista de viver pelo lucro. Ninguém precisa vender milhões de cópias de um CD para levar uma vida decente. Exageros desse tipo ajudam o “artista” a freqüentar a Ilha de Caras, não a produzir boa música.

Se o jornalismo brasileiro resolveu declarar guerra à pirataria, tudo bem. É compreensível, afinal, trata-se de uma prática ilícita. Contudo, seria bom que os repórteres começassem a pensar em argumentos melhores, pois essa conversa dos “novos talentos” é a pior que já ouvi, desde a historinha do CD que prejudica o aparelho.

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