sexta-feira, novembro 19, 2004

DA BALAUSTRADA



“Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.”
(Paulo Leminski)


Balaustradas: o que poderia significar essa palavra? Apareceu diante de mim numa das galerias da Biblioteca de Babel, de Borges. Já me ocupara da biblioteca em outra época e não cabe aqui retomar o assunto dessa forma, mas não custa nada mencionar o fato, que talvez sirva para ilustrar minha obsessão.

Este texto, na verdade, quer falar de outro assunto. Diz de uma tentativa de reconciliação entre mim e a palavra. Não falo mais da palavra balaustrada que, servindo de mote, já pode agora ser novamente abandonada: falo da palavra num sentido geral, enquanto linguagem.

Os leitores deste sítio não sabem, mas já faz algum tempo que eu e ela nos divorciamos. Nos últimos três anos (número cabalístico?) temos mantido uma relação impessoal, estritamente pragmática: só recorro a ela quando tenho algo a dizer; algo concreto; já não perdemos (será isso perder?) mais tempo em conversas descompromissadas à luz da lua. Instrumento: eis o que ela se tornou para mim. O encanto da época de namoro, os contos e poemas da adolescência, as leituras de Cortazar no ponto de ônibus, a descoberta de Clarisse – Água Viva –, tudo isso passou. E eu não dava a mínima importância.

Mas hoje... hoje foi diferente. Fui acometido por um sentimento de nostalgia, uma melancolia doída, uma pontada de saudade. Flagrei-me relembrando os velhos tempos...

Não sei ao certo em que ponto as coisas começaram a mudar, mas suspeito ter sido no momento em que comecei a acreditar que os conteúdos tinham mais importância que a forma, que ela já sabia o que eu sentia por ela e que declarações de amor não eram mais necessárias. Enganei-me. Forma, estilo e beleza, em nosso relacionamento, tinham mais importância do que eu jamais poderia imaginar. Porque a palavra é mulher e, como toda mulher, mesmo as mais duras e rígidas, valoriza a beleza e valoriza quem sabe valorizar a beleza. Ao mesmo tempo, guarda em si um encanto que é lhe é próprio, único: um sentido que se sente na pele.

Foi dessa beleza que me afastei. Fui em sentido contrário. Talvez por culpa da rotina. A cada dia que passávamos juntos, aumentavam os momentos em que me via forçado a entrar com ela em empreitadas maçantes, enfadonhas, sacais. Ora uma nota de rodapé, ora um lide objetivo; ora um e-mail escrito às pressas, ora um comunicado. Entramos no universo ordinário. Nossos encontros se tornavam, gradualmente, mais e mais superficiais.

Eu não percebia o que se passava, mas ela, palavra, nunca foi tola. Percebeu logo minha mudança, a maneira com que eu me tornara ártico, distante. Assim que se deu conta do que acontecia, passou a sabotar-me. Fazia-o, com a sutileza que lhe era característica, com pequenas atitudes. Faltava-me em horas crucias, não comparecia às minhas festas; enganava-me; fazia-me passar por ridículo. Do amor de outrora não havia nem vestígio.

Mas será que houve amor um dia? Hoje, confesso, não sei responder. Na época, parecia. Juro que parecia. Não podíamos ficar longe um do outro. Ela conseguia me seduzir nos lugares mais inóspitos, como páginas de jornais ou sebos malcheirosos! Mas tudo pode não ter passado de empolgação de puberdade...

Há pouco tentei conversar com ela. Mostrou-se arredia, tinha na voz um quê de ressentimento que deixava transparecer nas entrelinhas dos parágrafos. Sei que guarda mágoas profundas. E com razão. Por isso, apesar de sua atitude, não me deixei intimidar. Em outro momento, meu orgulho me teria feito calar, mas esse não era a melhor hora para bancar o orgulhoso. Abri meu coração. Disse que sentia saudades, que ela ainda mexia comigo, que estava arrependido, que a queria. Falei, falei, falei muito. Com uma sinceridade que, aos que convivem comigo há mais tempo, pareceria estranha. De minha parte, sabia que nunca sentira algo tão forte. Sim, era verdade o que eu dizia. E isso me dava forças para continuar falando, falando, falando.

Se não cheguei a comovê-la com meu discurso, que só existia porque ela assim permitira, sei que pelo menos a fiz balançar um pouco. Sei que não é possível mudar o passado e que, nesses três anos, muitas páginas ruins foram escritas. Mas não se pode arrancá-las agora sem mutilar a história toda, correndo o risco de fazê-la perder o sentido.

Espero poder encontrá-la novamente em breve. Pensei em procurá-la naquele Café que costumávamos freqüentar no passado, o Café Lispector, pra conversar com um pouco mais de calma. Hoje, volto ao silêncio em que ela me deixou e remôo a conversa de horas atrás numa hexagonal da Biblioteca de Borges: afinal de contas, o que significa balaustrada?

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