"Falar é incorrer em tautologias"
Há dois anos, mais ou menos, escrevi um texto que fazia referência ao conto A Biblioteca de Babel, do escritor argentino Jorge Luiz Borges. Na época, eu utilizava a metáfora borgeana sobre o universo para pensar a Internet e pregar a democratização dos meios de comunicação. O delírio, naquela época, visava estabelecer o diálogo entre os seres humanos, fazer todos falarem sobre tudo, romper as interdições do discurso apontadas por Foucault. Escrito de forma semi-automática, o texto naquela época, soava mais como desabafo - e funcionava melhor assim, pois me faltavam os instrumentos certos para aprofundar a discussão: era puro insight.
Gostaria de retomar aqui a idéia da Biblioteca Total para discutir não mais o ciberespaço (e os espaços públicos tradicionais, no sentido habermasiano), mas para divagar sobre o conceito de originalidade. Embora mergulhe um pouco mais fundo nas teorias, este texto não visa ser um tratado sobre o assunto, mas suscitar discussões (nunca é demais explicar que esse é o objetivo do Blog).
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A impressão de que uma avalanche de textos e publicações nos soterra não é só minha: Montaigne, como atesta Foucault, em As palavras e as coisas já sentira isso. Em seu Ensaios, ele escreveu: "Há mais a fazer interpretando interpretando as interpretações do que interpretando as coisas; e mais livros sobre os livros que sobre qualquer outro assunto; nós não fazemos mais que nos entreglosar"
Se pensarmos que a Internet não era nem um delírio na cabeça de um louco qualquer na época em que Montaigne escreveu o texto acima (e que era incipiente demais para ser bem apreendida por Foucault na época de As palavras e as coisas), a situação se torna ainda mais assustadora.
Segundo o estudo "Quanta Informação? - 2003", da Universidade da Califórnia, em Berkeley, por exemplo,
"A quantidade de informação gerada e armazenada a cada ano no mundo chegou a um volume tão grande que cientistas dizem que a Humanidade está sendo engolida por um oceano de dados. O primeiro grande estudo dedicado unicamente à tarefa de medir quanta informação há no mundo estima que em 2002 foram produzidos e estocados cinco hexabytes somente em meios físicos (papel, filme, meios óticos e magnéticos). Isso equivale ao conteúdo de 500 mil bibliotecas do Congresso Nacional dos Estados Unidos, cada uma delas com 19 milhões de livros e 56 milhões de manuscritos" (O Globo, 04 de novembro de 2003).
É lugar comum dizer isso, mas é mais informação do que uma pessoa pode consumir em uma vida.
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Dia desses, comentava com uma amiga sobre uma idéia que tivera para um conto. Antes que eu concluísse a explicação, ela começou a me interromper, citando alguns gênios que haviam desenvolvido aquela idéia (pelos nomes citados, nem cogitei a hipótese de fazer melhor e justificar a falta de originalidade com um acréscimo de qualidade).
O roteirista norte-americano Charlie Kauffman foi indicado ao Oscar pelo roteiro de Adaptação (dirigido por Spike Jonze), no ano passado. O argumento para o filme nasceu de uma tentativa frustrada de Kauffman para adaptar um livro (O caçador de orquídeas) para as telas. A busca da originalidade pôs em crise o roteirista. A partir do fracasso e da crise desencadeada na busca, Kauffman criou um novo roteiro. Incluiu-se no filme, falou sobre sua crise criativa e fez uma bela história. Os clichês, contudo, também estavam lá (o que, nesse caso, não desqualificou em nada o filme).
Há muito tempo que essa sensação de que há uma espécie de esgotamento no mundo me persegue. Compartilhei essa opinião com a amiga acima citada e ela sintetizou a coisa da seguinte forma: "Tantos gênios passaram pelo mundo!".
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Ontem, ao navegar na Internet, esbarrei numa entrevista com o crítico literário norte-americano Harold Bloom, publicada na Folha de São Paulo, em 31 de agosto de 91.Nesta entrevista, Bloom fala um pouco sobre seu livro A angústia da influência (1973). Segundo a teoria de Boom, a tradição literária seria um "ciclo interminável onde os novos escritores distorcem seus precursores na tentativa de criar suas próprias obras" [Bernardo de Carvalho, na abertura da entrevista]. Para Bloom, por exemplo, Shakespeare teria bebido na fonte de Christopher Marlowe (acho que a Virgínia Wolf cita Marlowe em Orlando, mas não tenho certeza). Na entrevista, ele diz:
"Shakespeare (...) é num nível notável uma tremenda transvalorização, uma poderosa distorção de uma figura menor, que é Christopher Marlowe. O vilão das tragédias de Shakespeare - Iago, Edmund, McBeth - não existiria sem Barrabás ou Tamburlaine, de Marlowe. O que Shabespeare fez foi explodir, ampliar tudo isso. É como se Marlowe fosse um peixinho engolido por uma baleia. É a lei da vida, da literatura e do intelecto. É como o Pierre Menard de Borges. O problema é saber se você é a vítima dessa relação ou se sabe o que está fazendo, para poder fazer alguma coisa".
Não conheço Bloom como deveria para poder tecer grandes comentários acerca de sua teoria, mas confesso que esse fragmento de A angústia da influência conseguiu criar em mim certa inquietação e curiosidade, por ir de encontro a algumas coisas sobre as quais tenho pensado muito nos últimos anos.
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Tantos gênios, tantos livros, tantas idéias, tantas bibliotecas. Entre os gênios, está Borges. E entre as bibliotecas, a de Babel. Vejamos o argentino define esta biblioteca em seu conto:
"Cuando se proclamó que la Biblioteca abarcaba todos los libros, la primera impresión fue de extravagante felicidad. Todos los hombres se sintieron señores de un tesoro intacto y secreto. No había problema personal o mundial cuya elocuente solución no existiera: en algún hexágono. El universo estaba justificado, el universo bruscamente usurpó las dimensiones ilimitadas de la esperanza. En aquel tiempo se habló mucho de las Vindicaciones: libros de apología y de profecía, que para siempre vindicaban los actos de cada hombre del universo y guardaban arcanos prodigiosos para su porvenir. Miles de codiciosos abandonaron el dulce hexágono natal y se lanzaron escaleras arriba, urgidos por el vano propósito de encontrar su Vindicación. Esos peregrinos disputaban en los corredores estrechos, proferían oscuras maldiciones, se estrangulaban en las escaleras divinas, arrojaban los libros engañosos al fondo de los túneles, morían despeñados por los hombres de regiones remotas. Otros se enloquecieron... Las Vindicaciones existen (yo he visto dos que se refieren a personas del porvenir, a personas acaso no imaginarias) pero los buscadores no recordaban que la posibilidad de que un hombre encuentre la suya, o alguna pérfida variación de la suya, es computable en cero."
Assim como a Biblioteca de Borges, nossa "sociedade da informação" pode tornar-se uma sociedade da desinformação, se não existirem bibliotecários competentes.
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Os conceitos de epistême, em Foucault e de crise, em Kuhn; a rebelião de Feirebend contra o método; as críticas da modernidade; a antropologia contemporânea; tudo isso deixa em mim a impressão de pode-se encontrar textos para justificar tudo no mundo contemporâneo. Em algum hexágono da biblioteca "pós-moderna" em que vivemos há um livro para legitimar qualquer coisa. A sensação de esgotamento, de que tudo está dado, de alguma forma, como nos textos da Biblioteca de Babel, me parece nítida hoje, porque no fundo, como o personagem de Borges,
"No puedo combinar unos caracteres
dhcmrlchtdj
que la divina Biblioteca no haya previsto y que en alguna de sus lenguas secretas no encierren un terrible sentido. Nadie puede articular una sílaba que no esté llena de ternuras y de temores; que no sea en alguno de esos lenguajes el nombre poderoso de un dios. Hablar es incurrir en tautologías. Esta epístola inútil y palabrera ya existe en uno de los treinta volúmenes de los cinco anaqueles de uno de los incontables hexágonos-y también su refutación. (Un número n de lenguajes posibles usa el mismo vocabulario; en algunos, el símbolo biblioteca admite la correcta definición ubicuo y perdurable sistema de galerías hexagonales, pero biblioteca es pan o pirámide o cualquier otra cosa, y las siete palabras que la definen tienen otro valor. Tú, que me lees, ¿estás seguro de entender mi lenguaje?)."
É possível, ou melhor, é presumível que muitas pessoas tenham idéias novas (pelo menos para elas) a todo o instante. Mas rastrear a originalidade disso num mundo com tanta informação, se torna algo cada vez mais complicado. Identificar a influência de Marlowe em Shakespeare é uma coisa e - pensando hipoteticamente - identificar a influência do velhinho que contava histórias ao pé do fogo nos textos do último gênio da liberatura sul-matogrossense é algo bem mais complicado.
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De minha parte, nos últimos anos não consigo pensar em ninguém que tenha criado algo realmente novo; quero dizer, sem estar, de uma forma ou de outra, preso a esta ou àquela influência. Contudo, acredito que isso não diminui a beleza de certas obras (e aqui caberia uma discussão do conceito de beleza que não estou apto a desenvolver).
(Poderíamos citar o conceito pós-moderno de bricolagem pra explicar isso. Ou mesmo fazer uma analogia com o virtual atualizado de Pierre Levy: criar algo novo a partir de algo existente - atualizar o virtual - não torna esta nova criação inferior à primeira, seu ponto de partida).
Comentando uma conferência de Borges em texto para a Folha de São Paulo, Luiz Costa Lima escreve: "Borges manifesta a esperança de que possamos esperar por um tempo ´em que os homens não sejam mais tão conscientes da história como somos. Um tempo virá em que os homens se importarão muito pouco com os acidentes e circunstâncias da beleza; estarão preocupados com a própria beleza´. A história, em suma, é o que nos impede o acesso pleno à beleza" .
A visão poética de Borges sobre a beleza pode ser um ponto de partida interessante para se repensar o valor atribuído à originalidade numa obra de arte (assim como as investigações de Benjamim no clássico A obra de arte na época de sua reprodutibilidade). Mas, por outro lado, coloca um peso grande sobre o ainda muito relativo/subjetivo conceito de beleza.
Vale destacar que Bloom também inspirou-se em Borges para escrever sua teoria. Ao que parece, o argentino já percebia esse processo em Shakespeare também. Segundo, Bloom, Borges buscaria subterfúgios para escapar disso:
"Acho que Borges (...) dissimulou essa angústia. A razão pela qual só escreveu histórias intricadas, que são variações interpretativas de escritores precedentes, é que ele não queria confrontar o seu próprio ´romance familiar´. Por razões óbvias, como a relação muito próxima com a mãe. Ele não queria confrontar nem suas próprias idéias sobre a influência".
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As questões que gostaria de colocar agora são as seguintes: vale a pena valorizar tanto a originalidade? Qual o valor da categoria originalidade na moderna crítica literária (em especial, na brasileira)? Como pensar o conceito de originalidade no mundo contemporâneo? Até que ponto nos cabe recalcar a "angústia da influência"? Como conceber a "beleza" de uma obra de arte sem recorrer ao conceito de originalidade?
Deixo as questões em aberto, esperando - do fundo do coração - iniciar uma discussão sobre isso.
Psicotopicos
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