terça-feira, janeiro 20, 2004

O INÚTIL

Queria acompanhar aqui um texto de Arnaldo Jabor, tocando, de leve, alguns conceitos de pós-modernidade desenvolvidos pelo sociólogo francês Michel Maffesoli e relacionando isso, mais ou menos, à finalidade desse blogue.

Em texto publicado no Jornal “O Globo”, “Nunca a burrice fez tanto sucesso”, Arnaldo Jabor faz um breve resgate histórico dos anos 70 pra cá, para explicar o que, depois de ter visto o filme de Denis Arcand, tenho chamado de “Invasões Bárbaras”. Antes do filme, eu usava a idéia do “retorno do arcaico”, que Maffesoli usa para explicar alguns fenômenos comuns em nosso tempo (a fragmentação da realidade, a “tribalização”, o fortalecimento do que ele chama de “imaginal”, em detrimento do racional que norteara a modernidade, em outra época) para definir (ou pelo menos entender melhor) a “Condição Pós-moderna”, como diria David Harvey, ou a contemporaneidade, como eu prefiro dizer.

No texto, Jabor escreve:

“Nos anos 60, parecia que o mundo ia descobrir um reencantamento laico, com a glória da juventude, a alegria da democracia criativa, que a inteligência teria um lugar no poder, que a ciência e a arte iam nos trazer uma nova beleza de viver. Em 68, não foram apenas as revoltas juvenis que morreram; começou a nascer uma vida congestionada, sem espaço para sutilezas de liberdade. Os anos 70 foram inaugurados com a frase de Lennon de que o sonho acabara e com a morte sintomática de Janis Joplin e Hendrix, com o fim dos Beatles e com a chegada dos caretas ´embalos de sábado à noite´”.

Tudo isso de que fala Jabor foi determinante na configuração do mundo como o conhecemos hoje. A crítica da modernidade (por gente como Nietzsche, Foucault, Freud, Derrida e outros) desmontou muitos conceitos considerados estáveis para a ciência, da mesma forma como o iluminismo destruíra conceitos religiosos que durante idade média serviram de apoio para toda uma sociedade. Sem pontos de referência, o homem parece ter caminhado para o niilismo (e para o hedonismo) a passos largos. Caminhada que foi acelerada pelo desenvolvimento do capitalismo que culminou no neoliberalismo que quebrou a Argentina e privatizou até o ar dos brasileiros.

Os movimentos citados por Jabor, foram encampados pelo mercado, tornando-se meros simulacros, fazendo nascer o “punk de butique” e o “hippie-chique”, entre outras tantas formas esvaziadas de ideologias ou movimentos.

O “reencantamento laico” não veio. O ser humano parece não ter conseguido adaptar-se à liberdade sonhada pelos jovens dos anos 60. Nem Marcuse, nem Gabeira, nem Glauber nem Godard... ninguém conseguiu manter vivo aquele espírito. O homem, com suas crenças “iluminadas” com holofotes, começou a buscar novos “deuses” para se apoiar. Como fala Jabor, “uma falsa “liberdade” jorrou do mercado de massas e a volta da burrice foi triunfal. O mercado e o poder começam a programar nosso desejo por simplismos e obviedades. Cresceu na sociedade uma sede da burrice, como mostra a declaração de muitos jovens austríacos que disseram há tempos: ´Votamos no Haider (o neonazista) porque não agüentamos mais a monotonia da ‘política’, o tédio do ‘bem’, do ‘correto’, do ‘democrático’!´”.

O mesmo discurso que aproxima os jovens dos neonazistas, para Jabor, parece aproximar outros jovens, adultos e velhos das igrejas evangélicas, dos cultos imbecilizantes, dos persamentos formatados, com diretrizes rígidas que indicam o caminho a seguir. “Outro dia, vi na TV um daqueles “bispos” de Jesus de terno-e-gravata clamando para uma multidão de fieis: ´Não tenham pensamentos livres: o Diabo é que os inventa!´”, conta Jabor. Para ele, a prova de que caminhamos para o reino da estupidez é o presidente norte-americano, o Bush. Falando sobre ele, Jabor escreve:

“Ele se orgulha de sua burrice. Outro dia, em Yale, ele disse: “Eu sou a prova de que os maus estudantes podem ser presidente dos USA”. É a vitória da testa curta, o triunfo das toupeiras. Inteligência é chata; traz angústia, com seus labirintos. Inteligência nos desampara; burrice consola, explica. O bom asno é bem-vindo, enquanto o inteligente é olhado de esguelha. Na burrice, não há dúvidas. A burrice não tem fraturas. A burrice alivia — o erro é sempre do outro. A burrice dá mais ibope, é mais fácil de entender. A burrice até dá mais dinheiro; é mais “comercial”. A burrice ativa parece até uma forma perversa de “liberdade”. A burrice é a ignorância ativa, a burrice é a ignorância com fome de sentido. O problema é que a burrice no poder chama-se “fascismo””.

Maffesoli, de certa forma, concordaria com Jabor. Para o francês, a pós-moderniade, como dito acima, não se pauta pelo racional, mas pelo imagético. A velha oposição entre forma e conteúdo parece ter sido resolvida na pós-modernidade. A preferência pela primeira é nítida, seja pela forma dos corpos, das imagens ou dos discursos. O conteúdo, remete à modernidade, ao iluminismo. A forma remete ao Barroco, ao pré-moderno, períodos nos quais a razão também não era o ponto principal.

Maffesoli, apesar disso, é otimista com relação à pós-modernidade. O sociólogo consegue ver pontos positivos no período (que para ele é de transição). De certa forma, a pós-modernidade representaria uma ruptura com o pensamento único, verticalizante e aproximaria o homem da visão multiculturalista que a nova antropologia nos trouxe. Pensar a modernidade enquanto transição, aproximao francês de Boaventura de Souza Santos, o sociólogo português. Este, por sua vez, defende um sujeito (conceito moderno) ativo, capaz moldar a disforme pós-modernidade para construir “um mundo melhor” que ele acredita “possível”. Boaventura, para quem não sabe, é um dos organizadores do Fórum Social Mundial.

Nenhum desses pensadores (Jabor também é um pensador, o nosso profeta louco), discorda completamente com relação a o que seja a contemporaneidade. As divergências aparecem mais na hora de definir para onde vamos. É aí que a coisa complica.

Se seguirmos com Jabor, temos o cinismo ao nosso lado. Poderemos olhar o mundo com desprezo e levar a vida, sabendo que ela não vale lá grande coisa. Se seguirmos com Maffesoli, precisaremos fechar os olhos para uma série de coisas, concentrando-se, basicamente, em nosso próprio umbigo. Se optarmos por Boaventura, o caminho é o da luta, da utopia, dos murros em ponta de faca.

Por aqui, oscilo constantemente entre Jabor e Boaventura, impregnado de Maffesoli. Não acho que escrever, pensar ou espernear terá muita utilidade, mas sigo fazendo. Fico com João Cabral de Melo Neto: "Fazer o que seja é inútil. Não fazer nada é inútil. Mas entre fazer e não fazer mais vale o inútil do fazer"!

Entre as inutilidades das quais me ocupo, está o Psicotópicos. Aqui, tento estabelecer diálogos, refletir um pouco contribuir, de alguma forma, para preservar ilhas virtuais (e reais) onde o pensamento possa ser buscado sempre -- e, vez ou outra, possa ser exercido. Como já disse em outros textos, o que importa aqui é o processo e, quando falo disso, não posso deixar da famosa frase de Riobaldo, o herói de Grande Sertão: veredas: “O real não está na saída, nem na chegada – ele se apresenta pra gente é no meio da travessia”.

Nenhum dos pensamentos e idéias que surgem aqui pretendem afirmar-se enquanto verdade. Por mais que a retórica seja uma constante e sirva para amarrar o discurso, muitas vezes essa atitude passa mais pela busca de um estilo para tornar o texto agradável (e compreensível) do que por uma estratégia de persuasão. Em vez de convencimento, o que se busca aqui é o diálogo. Em vez de consensos, a multiplicidade das visões (e é aqui que me aproximo novamente dos teóricos da pós-modernidade).

Sei que estou me estendendo demais, mas creio que esse texto é importante para elucidar alguns pontos que caracterizam o blogue enquanto veículo de comunicação (em micro-escala, mas vá lá!).

O Zé, freqüentador assíduo do blogue, citou Nietzsche ao comentar um post do Psicotópicos. Esse alemão bigodudo tem uma obra marcada pelas incompreensões de seus leitores. Antes de ser um filósofo (e um filólogo), Nietzsche era um escritor. Parecia ser alguém que escrevia por prazer, sorvia as palavras com gosto. Em “Além do bem e do mal”, livro de Nietzsche que li no ano passado, isso ficou muito claro pra mim. Wittgenstein se destaca entre tantos por destacar em seus textos a incapacidade das palavras para expressar de forma correta o pensamento. Talvez por isso, o pensamento do segundo Wittgenstein seja constituído basicamente por “insights”, fragmentos de grandes idéias que o filósofo nem sempre completava, mas que para os leitores apareciam como ótimos pontos de partida para uma (ou muita) reflexão.

Como rascunho virtual, o Psicotópicos é repleto de incompletudes e, muitas vezes, incorpora o erro como parte do processo. Ao mesmo tempo, essa é uma pseudo-reação à exigência capitalista de “competência”, de “eficiência”, de “perfeição” – palavras sempre repetidas nos discursos de empresários e administradores. Não me oponho a essas “qualidades”, mas não acho que perfeição seja um atributo do ser humano. Muitas vezes, a busca pela perfeição aproxima o homem da máquina, ou de algo desumano. Citando um termo de Habermas, o interesse do Psicotópicos é também descolonizar o “mundo vivido” e não permitir que a lógica técnico-intrumental invada este espaço que, embora muitas vezes pareça “sério”, é de lazer. O Psicotópicos é o meu “inútil do fazer” que vale a pena.

Este texto mesmo, embora se aproxime, em sua forma, dos discursos científicos, é apenas um exercício estilístico, cheio de buracos, de falhas, de lacunas. O sentido dele existe muito mais para mim – e assim, já faz diferença – do que para qualquer outra pessoa. Se das lacunas, algum diálogo surgir, alegria alegria! Se não, paciência: já recebi a minha recompensa.

De resto, é isso aí. O texto ficou grande demais e provavelmente não será lido. Mas repito, se algum Jo conseguiu chegar até aqui e se alguma coisa aqui causou incômodo ou deu vontade de criticar, vá em frente. Estamos aqui (eu e minhas máscaras) para isso...

(E texto escrito em junho de 2004, substituiu um antigo post)

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