quarta-feira, janeiro 28, 2004

Psico Tópicos
Guarapari, turismo e construção
Reflexos de Guarapari - Parte I


Se há uma coisa que caracteriza Guarapari, é a falta de uma característica. Bom, esse é o ´´ lugar comum´´ básico pra quem não consegue definir alguma coisa direito. Foucault, em As palavras e as coisas, ao analisar o Dom Quixote, de Cervantes, mostra como a falta de pensamento analítico - a busca incessante da semelhança - acaba (ou acabava, naquele caso) sendo um identificador da loucura. Se Foucault estiver certo, acredito que preciso providenciar algumas coisas antes de minha internação.

Mas vamos lá: na realidade (não sei ao certo qual), o topoi da multiplicidade como característica de uma coisa da qual as especificidades não são tão claramente delimitadas, é um dos mais antigos. Há anos, articulistas de jornais (nós, os jornalistas, amamos a superficialidade) utilizam esse argumento para definir o Brasil. (Usam também a descendência lusitana, a miscigenação, o carnaval, o futebol e a afirmação (?) ufanista famosa: ´´O Brasil é o país do futuro´´).

Teoricamente, aproximar-se do que seria a identidade - sem esquecer de seu caráter dinâmico, mutante - de Guarapari seria tarefa mais fácil do fazê-lo com o Brasil. Contudo, o procedimento, deveria ser semelhante. É preciso aproximar-se de forma lenta, gradual, separando, parcimoniosamente, as parecidíssimas camadas.

Como o Brasil, Guarapari também foi, de certa forma, colonizado. Nordestinos - baianos - atraídos pela explosão da Construção Civil, mineiros, sedentos de praia, cariocas e paulistas (em menor número), em busca de paz... e pessoas de todos os cantos do país, que talvez tenham vindo em busca da saúde que a cidade prometia.

Criou-se aqui um mosaico. Como a industria cultural, segundo alguns teóricos da comunicação, fez um estrago na América Latina, por ter-se infiltrado com todo seu poder num lugar onde a identidade era um rascunho ainda, uma cultura em formação, a imigração tornou Guarapari uma cidade sem rosto. Noções como a de cidadania, cultura e tradição foram se perdendo, mais ou menos como no resto do Brasil.

Nunca é demais lembrar a semana de arte moderna e o Manifesto Antropofágico, de Oswald Andrade. Nesses sete anos que moro aqui, a impressão que tenho é que, para descobrir-se, Guarapari precisa ser antropofágica mesmo, como os modernistas.

Contudo, para que isso aconteça, acredito ser preciso, antes de qualquer coisa, acabar com essa apatia que toma conta da cidade, ou, pra usar um termo mais comum aos guaraparienses, do município.

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Há uma espécie de lenda que ouço há anos. Diz essa lenda que quem mora à beira da praia não gosta de trabalhar. Embora saiba que esse barulho de onda quebrando, esse sol, esse calor, essas águas, tudo isso dá na gente uma vontade de ´´deixar rolar´´, de levar a vida devagar, pra não faltar amor; embora saiba disso, sei que há, como em toda lenda, uma boa dose de exagero - e de preconceito - nessa ´´crença´´. Não acredito que haja uma incompatibilidade entre o viver a vida e agir para tornar esse viver ainda melhor.

A arte e a cultura são duas coisas que ajudam a tornar o levar a vida mais rico - no sentido menos capitalista do termo. Pensar formas de tornar Guarapari uma cidade mais aprazível nesse sentido - com maior oferta cultural, para seu povo, em primeiro lugar, e, de quebra, para o turista - seria um dos caminhos - talvez o mais agradável - para tornar Guarapari uma espécie de referência para outras cidades litorâneas do país.

O turismo, como acontece hoje na cidade, tem um caráter extremamente predatório e as ruínas deixadas pelo turista a cada ano deixam a cidade cada vez menos interessante e cada vez mais incapaz de atrair turistas. Como uma nuvem de gafanhotos (cada vez menor, é verdade) - perdoem a dura analogia -, o turista que vem hoje a Guarapari apenas como forma de extravasar, consumindo - a palavra é essa mesma - o que a cidade tem - e o que não tem - para ser extraído, é um turista que não deveria interessar mais aos guaraparienses.

É preciso pensar em formas de atrair para a cidade turistas que a fluam, vivam com ela por um período, e saiam daqui deixando-a, se não intacta, pelo menos não em ruínas.

Essa Guarapari sem rosto que oferecemos ao turista é mais ou menos como o paraíso encontrado pelos portugueses, mais ou menos como Arthur Miler definiu o Hotel Chelsea, uma "casa da tolerância infinita", um lugar onde se pode fazer tudo, usar tudo, sem repor (o dinheiro que fica na cidade é insignificante em relação ao desgaste gera esse tipo de turista).

O leitor já deve ter visto num ou noutro Filme B, um assassino - um matador de aluguel ou figura afim - dizer que não se deve olhar no olho da vítima, para não sentir pena. Quando Guarapari tiver um rosto, poderá encarar seu algoz de frente, mas não para fazê-lo sentir pena e sim respeito.

(Não quero aqui demonizar o turista, muito pelo contrário. A troca cultural que o turista possibilita, é extremante enriquecedora, mas tudo depende de como se dá a relação entre o turista e o nativo (ou o morador da cidade turística). No caso de Guarapari, a troca não tem acontecido. É isso que precisamos corrigir. E o fato dessa troca não acontecer hoje, está em grande parte relacionada ao fato de Guarapari não ter o que oferecer (ou não saber como oferecer)).

***

Mas esqueçamos o turismo, por hora, e voltemos à discussão acerca da cultura guarapariense. Que cultura é essa? O que representa Guarapari? A realidade praiana? A Música? A vida noturna? O artesato? O que, afinal de contas, é referência na cidade?

Eu, sinceramente, ainda não sei responder.

Assim como os prédios que lançam sombra nas praias da cidade, acredito que as referências de Guarapari precisam ser construídas. E talvez os turistas que ajudaram a erguer (ou povoar) os prédios do município, sejam úteis também na construção desse referencial.

Às perguntas que surgiram neste texto, não apresentarei respostas. Deixo a questão em aberto. Que este texto seja um dos muitos pontos de partida possíveis para uma discussão que vise (re)pensar esta cidade.


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